Todos nós ouvimos falar desde muito cedo das perguntas difíceis dos miúdos. Vêm-nos logo à cabeça questões sobre sexo, pois então. Talvez, puxando pela cabeça, imaginemos perguntas sobre o dinheiro, a morte, a guerra, mas sempre abstractas, perguntas que os pais desempoeirados que somos todos sabem responder com algum riso e uma nova história para contar aos amigos: «Vejam lá como me safei, hein?».
Na verdade, descubro agora, há perguntas quase impossíveis de responder sem doer — e as perguntas mesmo difíceis nunca são as mesmas: ninguém nos preparou para elas. E, não, nem sempre acertamos na resposta…
Tudo começou bem. O Simão, o meu filho mais velho — e que tem cinco anos, para quem não sabe — anda a aprender a nadar. O sol — sempre com a moderação recomendada (digo-o para ninguém achar este texto perigoso para a saúde) — deu-lhe aquele saudável ar trigueiro das crianças felizes.
Nós ficamos babados a olhar para um filho assim — até porque, ao contrário dele, tanto eu como a Zélia nunca ganhamos cor que se veja: somos assim a dar para o pálido, com variações de encarnado quando apanhamos sol.
Nada fazia antever a volta que a conversa ia dar. Estávamos os três a conversar descontraidamente, a brincar e a rir, quando um de nós diz: «Com essa cor, nem pareces nosso filho!»
Foi inocente, garanto! Foi uma brincadeira! Mas o Simão desatou nesse momento a chorar. Imagino que, na cabeça dele, os pais tivessem acabado de declarar que ele não era bem filho deles…
Entrámos em modo de emergência. Cheguei-me ao pé dele e disse: «Estávamos a brincar, tu és muito parecido connosco! Queres ver fotos para veres como é verdade?…»
E pus-me a procurar fotos antigas minhas, para ele ver como era parecido comigo (também é parecido com a mãe, mas em caso de emergência é mais fácil procurar parecenças dum rapaz com o pai).
Ele lá se acalmou e depressa estava a fazer perguntas sobre as fotos — e diverti-me a ver como eu era, aos cinco anos, no barco de Tróia, na praia, no parque de campismo de Melides, numa rua de Peniche…
Ele estava de novo feliz e aos saltos, a ver fotografias, a conversa a correr numa feliz tarde de Verão entre um filho e os seus pais.
Pois chegámos a uma foto da minha avó Gisela, que o Simão não conheceu porque morreu em 1995. Disse-lhe, sem hesitar, que era a mãe da avó Clara. Ele perguntou se já tinha morrido e eu disse que sim. Ele parece encarar estas coisas com alguma naturalidade… Sorri. Uma pergunta difícil, resposta dada. Não é assim tão difícil como dizem!
Pois ia eu a mudar de foto quando ele faz outra pergunta — esta sim, a pergunta mais difícil que já me fez.
«Como é que a avó morreu?»
Fiquei calado, de boca meio aberta. A Zélia olha para mim e ficamos sem saber o que responder. A minha avó morreu há muitos anos, assassinada por um assaltante — isto numa das vilas mais sossegadas do nosso país: Atouguia da Baleia, ali ao pé de Peniche.
Como é que se explica isto a uma criança? Acho que fiz o que não devia: disse-lhe que tinha sido um acidente e tentei mudar de conversa. Ele perguntou ainda que acidente tinha sido. Desviei a conversa. Ele não ficou muito satisfeito, mas não perguntou mais. Alguns minutos depois, quis saber que idade tinha a avó quando morreu. Disse-lhe que tinha 60 anos. Ele diz: «Um seis e um zero?» Sim, filho, pensa em matemática! Mas ele: «E quem morreu mais na nossa família?» Lá lhe falei dos outros avós e da minha tia Fatinha — «Que idade tinha?» «Quarenta e dois.» «É pouco…» «Pois é…» — e tive de falar das vezes em que morremos de doença… Desta vez, não me desviei do embate.
A conversa continuou por outros caminhos. Pouco depois, ele já queria voltar à água e à brincadeira. E eu continuei a pensar: por que razão não lhe contei o que aconteceu à minha avó? Não parece difícil de explicar: há algum motivo para deixar uma criança tão nova perceber como o mundo pode ser violento e que outras pessoas podem matar aqueles de quem gostamos? Mas, mais tarde ou mais cedo, ele vai saber e ficará baralhado por não lhe termos dito logo — ainda por cima, ele está sempre a dizer que não gosta de mentiras…
Haverá outras perguntas destas? Imagino que sim. As perguntas difíceis não são aquelas que nos deixam a rir de embaraço — são as outras, aquelas a que não queremos responder.
Enfim, atrapalho-me. Tinha pensado numa crónica leve, simples e divertida. Mas não consegui. Vou brincar com o meu filho para a água, que o Verão acaba num instante e o mundo não demora.
(Crónica no Sapo 24.)
Prezado Senhor, perdoe a intromissão, mas se publicou, não levará a mal um comentário; este não para minimizar o desconforto que li no seu texto, mas para partilhar consigo o meu pensamento. Não sou psicólogo, mas é meu convencimento que nenhuma criança de cinco anos está preparada para ouvir e entender um acto de violência dessa dimensão. Sei que pode haver mentiras piedosas, mas o senhor não mentiu; de facto foi um acidente, um aceitável eufemismo que usou e que eu aplaudo. Mais tarde, o seu filho irá entender o motivo por que usou esse eufemismo e não o cruento assassínio. Nem sempre, nós, os adultos, estamos preparados para alguns embates. E uma criança de cinco anos não está seguramente preparada para tanto.
Reitero o meu aplauso pelo eufemismo usado e continue nessa senda. Não tome o que digo como um conselho, mas tão-só como uma opinião de um ancião. Deixe a sua criança crescer sem traumas. Ela tem tempo de saber que este mundo tem avesso.
Boa noite.
Os meus cumprimentos.
José-Augusto de Carvalho
Concordo com tudo o que escreveu, José-Augusto.
O Marco Neves procedeu correctamente.
Henrique Salles da Fonseca
(avô de netos que hoje têm 5 anos)
Seu filho, como quase todas as crianças, é dotado de “leitura espiritual”, dom esse que nós, adultos, já perdemos; o fechar do cofre, como se usa dizer em linguagem vulgar.
Diz o Marco Neves que “mais tarde ou mais cedo, ele vai saber e ficará baralhado por não lhe termos dito logo”. Na realidade ele já sabe, mas falta dar corpo a esse conhecimento. Mais tarde ele vai querer indagar a(s) causa(s) desse acidente.
Sem querer o Marco Neves nem lhe mentiu, faltando apenas especificar qual o tipo de acidente, o que, aliás, ele lhe perguntou. Temos sempre a ideia que os acidentes ocorrem do exterior para o interior. Mas, na realidade, por muito que isso nos doa, somos nós que os provocamos ou atraímos. Mais tarde ele vai encontrar o avesso.
E você também… graças a ele.
Eu concordo com os comentários anteriores. É melhor não dizer tudo de uma vez. Eu agradeço por não ter sabido de algumas verdades dolorosas.
As verdades infantis não são as verdades do adulto nem têm de ser. É importante não mentir quando nos referimos a pessoas ou factos que existem ou existiram, o que não implica contar a verdade em pormenor. O seu meio termo parece-me lindamente.
Não sou adepta de grandes efabulações e eufemismos, mas também não vejo proveito em descrever pormenores sangrentos a miúdos pequenos. Vi o meu primeiro morto com 6 anos. De lá para cá já lhes perdi a conta, mas os de maior proximidade familiar, continuam a assombrar-me. Claro que hoje em dia, ninguém leva crianças para um funeral, mas há umas décadas, as coisas eram diferentes.Para aligeirar o tom, até porque a morte foi uma constante na minha família e todos a tratamos por tu, ocorreu-me uma série cómica (não me lembro do nome, porque não vejo regularmente) em que o pai, a pretexto de suavizar o golpe, ainda enterra mais a lâmina e faz-nos rir a bandeiras despregadas. Começa na morte do animalzinho doméstico, o pai generaliza que o bichinho estava velho e que tudo e todos morrem um dia. Ora o garoto não é pateta e começa a elaborar que se todos morrem, o pai iria morrer também. Pior, a Mãe vai pelo mesmo caminho. Já aos berros, descontrolado, pergunta: – “Então, eu também vou morrer?!” A mãe ouve o “estardalhaço” e agradece ao marido o “consolo” e a “subtileza” com que este lidou com o assunto.
Boa tarde,
apenas para dar a conhecer o “outro lado”, o lado da criança e o seu medo de “mais tarde ou mais cedo, ele vai saber e ficará baralhado por não lhe termos dito logo”.
Em casa dos meus pais havia (e há ainda) uma fotografia dum jovem casal, nos seus trinta e muitos. Nasci e vivi a apreciar aquela foto sem nunca conhecer aquelas pessoas, que não são família.
Desde cedo eu e o meu irmão indagámos os meus pais quem eram aquelas pessoas e o porquê de termos uma foto num local tão proeminente a par com todas as fotos de família.
Foi-nos sempre dito que, por uma infeliz acaso da vida, aqueles dois eram um casal amigo que tinha morrido de enfarte com pouco espaço entre cada morte.
Apenas com treze ou catorze é que me foi dito o verdadeiro motivo daquelas mortes. Nunca deixei de pensar no quão certo estavam os meus pais em me esconder a verdade tanto tempo. Senti e ainda hoje sinto que foi o que melhor fizeram.
Penso que o seu filho irá pensar o mesmo quando, mais tarde, obter a verdade.