Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

A rainha portuguesa que Nova Iorque derreteu

Às vezes, as viagens mais interessantes acontecem-nos mesmo à porta de casa. Pois imagine o leitor que fui dar um passeio à beira-Tejo e, sem sair de Lisboa, vi-me transportado para debates furiosos na Nova Iorque dos Anos 90. Tudo por causa duma rainha portuguesa.

Uma rainha a ver o Mar da Palha

Pois, se estiver perto de Lisboa e tiver umas horas, vá passear para o Parque Tejo, ali por baixo da Ponte Vasco da Gama. Se começar a percorrer o passadiço à beira-rio em direcção à Torre Vasco da Gama, encontrará uma estátua de bronze de uma mulher de cabelo desgrenhado — é a estátua de D. Catarina, a portuguesa que foi rainha de Inglaterra.

Olhei para aquela figura peculiar. Li a placa que lá está a informar que aquela era uma reprodução de outra estátua construída em Nova Iorque em homenagem à rainha portuguesa que deu o nome ao bairro de Queens. Uma rainha que, dizem também por aí, ensinou aos ingleses o prazer do chá das cinco.

Ora, não sei bem porquê, apeteceu-me ver uma imagem daquela estátua em Nova Iorque. Como não podia, naquele momento, teletransportar-me para o outro lado do oceano, procurei imagens da estátua original. Não encontrei. Fui a guias de Nova Iorque: nada. Procurei no Google Maps. Nada. Por momentos, pensei em ir para o aeroporto e meter-me num avião para procurar a estátua a pé pelas ruas de Queens, mas lembrei-me de que tinha de ir buscar os meus filhos à escola.

Cocei a cabeça: mas que raio? Como é que nós temos aqui à beira-Tejo uma réplica de uma estátua que não aparece em lado nenhum na Internet? Será essa estátua a única que ninguém fotografou? Pus o telemóvel no bolso e continuei a passear.

A pele escura da rainha

Em casa, procurei melhor. Encontrei então este artigo do The New York Times que me explicou o que se passou: The Statue That Never Was. A estátua que nunca chegou a existir…

A história conta-se rapidamente: no final dos Anos 80, uma associação de portugueses propôs a criação de uma estátua para honrar a rainha portuguesa que deu o nome ao bairro de Queens.

O projecto ganhou apoios e avançou. Os autarcas de Queens acharam, certamente, que uma estátua daquelas seria bem-vista pela comunidade portuguesa, o que dá sempre jeito.

Para a criação da estátua foi escolhida a escultora Audrey Flack, que se lançou ao trabalho e criou os modelos necessários para a criação da gigantesca rainha de bronze.

A obra foi-se fazendo ao longo dos Anos 90, até que a pobre da rainha foi atingida por um belo dum furacão mediático.

De repente, a estátua não era bem-vinda. Vários activistas denunciaram a rainha como uma monarca britânica ligada ao tráfico de escravos. Em manifestações públicas e artigos furiosos, houve quem também apontasse para o facto de não haver qualquer documento que ligue a rainha ao nome do bairro.

Chegou a haver reuniões públicas empolgadas e manifestantes a agitar cartazes com o simpático apodo «Slave Queen». A câmara do Borough de Queens acabou por retirar o apoio ao projecto.

A escultora ficou inconsolável: não só tinha investigado a rainha e concluído que era uma personagem admirável, como tinha sido cuidadosa em incluir na face características de várias raças, o que nos pode parecer estranho se não nos lembrarmos que as estátuas são símbolos. Aliás, segundo a escultora, na entrevista ao The New York Times, a rainha era gozada em Inglaterra por ter «dark Portuguese skin»: pele escura à portuguesa.

A estátua era, para pessoas diferentes, um símbolo da escravatura e do domínio colonial britânico ou uma homenagem à multiculturalidade de Nova Iorque. Tivesse existido, seria também a maior estátua criada por uma mulher em exposição num espaço público.

Uma rainha para todos os gostos e todos os desgostos. O problema é que as estátuas não são como os gatos dentro de certas caixas: ou bem que existem ou bem que não…

Uma estátua derretida

Enfim, a fúria mediática, a falta de apoio político e as manifestações secaram o financiamento da estátua. Não havia dinheiro para construir aquela monarca de bronze. A fundição onde estava a ser construída não tinha dinheiro para pagar à escultora. Ainda tentou terminar o projecto pagando (menos) a um outro escultor, mas Audrey Flack levou o caso até aos tribunais: a estátua seria dela ou não seria.

Não foi. A rainha de bronze acabou derretida. Uma das réplicas rumou a Lisboa, onde aportou no Mar da Palha, com o seu cabelo desgrenhado e feições de todo o mundo na cara.

Porque trago esta história para aqui?

Bem, primeiro é interessante notar que as grandes discussões sobre estátuas e afins não são de agora. O espaço público das cidades também se faz destes conflitos, desta luta pelas memórias de pedra. Depois, é um bom aviso: não convém confiar muito na história simplificada das placas e dos guias turísticos. Muitos ficarão mesmo convencidos que a estátua lisboeta é uma réplica de uma estátua que existe mesmo em Nova Iorque. Ora, a D. Catarina de bronze, ali a olhar para o Mar da Palha, não tem gémea em Queens. Aquelas lutas autárquicas nova-iorquinas acabaram por oferecer a Lisboa uma lembrança da rainha que daqui saiu há muito tempo para ensinar os ingleses a beber chá. Ou será que a história do chá também não é bem assim? Fica para outro dia e para outras viagens…

(Crónica no Sapo 24.)
Imagem inicial por Metro Centric (Oriente) [CC BY 2.0 ], via Wikimedia Commons.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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5 comentários
  • Como pode, segundo os historiadores, uma rainha impopular no seu tempo, ditar a modas como a do chá das cindo e a introdução dos talheres na corte inglesa? Ou será que não foi bem assim?…

    Como dica, aqui há tempos chegou-me aos ouvidos que o nome “Tea” que os ingleses dão ao “Chá”, viria do facto da rainha não sabendo falar inglês, se dirigir em português aos seus próximos com a chávena de chá, oferecendo-a gentilmente, dizendo “Para ti”

    Fico à espera dos desenvolvimentos 🙂

  • A mentalidade colonialista foi e, inegavelmente, será obtusa. Os regimes coloniais procuraram negar o óbvio. Se o nome do bairro Queens existe e, casualmente, fui lá parar de metro de New York, porque negar quem atribuiu o nome ao local? A única razão invocada é o simples facto de ser Rainha Portuguesa Negra”? Hitlers de meia tigela.

  • Um segredo bem guardado e que o cidadão incauto e crente no que lhe colocam para ler, pensa ser verdade. Pois é o meu caso, confesso. Vou dar as minhas voltas por essa zona a pensar no próximo artigo que tenho de publicar no blogue ou simplesmente para fazer bem à saúde, passo quase sempre por ela, muitas vezes paro a pensar que nós somos como a Rainha inglesa pouco conhecida. Levamos cortesia por onde quer que passemos, criamos tradição num país que até nem é o nosso, mas há sempre alguém que acaba por reconhecer e celebrar. Não é que espere poder ter uma estátua, mas olho com carinho a nossa pequena estátua da Rainha, penso no povo americano e agradeço a honra. Afinal nada é verdade e nem ingleses nem americanos pensam noutros que não sejam eles próprios. A cor da pele ou a religião e D. Catarina era católica num país em que muitos não a viam por isso com bons olhos.
    Enfim, uma ideia para um artigo novo.
    Obrigado Marco pelo excelente artigo e pela investigação.

  • Muito curiosa esta história. Já tinha lido acerca dos ingleses não simpatizarem com o tom de pele da rainha, mas desconhecia tudo o resto.

  • Tendo começado a ler, ainda não tinha feito 5 anos, e digo começado, porque o consegui praticamente sozinha (tal era a ânsia de entrar nesse mundo mágico da leitura).
    Assim, para mim, os seus artigos dizem-me sempre qualquer coisa, mesmo quando abordam temas que eu conheço, ou que julgo conhecer, como é o caso.
    Obrigada por compartilhar os seus conhecimentos, que na maior parte das vezes, são autênticas pérolas (pelo menos para mim).
    Se li muito, agora não tanto, perdi um pouco o norte, no que respeita a regras gramaticais. Virgulas? São para distribuir no fim, como “confetti” ???????? !

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Marco Neves

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