Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Ai das crianças a brincar contra o Regulamento

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Antes de falarmos das crianças que brincam contra o regulamento, deixem-me contar-vos uma história de trânsito em Lisboa.

Ontem de manhã, passei no cruzamento do Baptista Russo, ali em Cabo Ruivo. Não sei se conhecem, mas é como muitos cruzamentos por esse país fora: um sem número de faixas cruzadas, controladas por semáforos, onde o trânsito se acumula e a paciência se desfaz.

Como sabem, só podemos avançar quando temos espaço suficiente para não ficar a impedir a passagem aos carros que vão noutras direcções, depois de passar a verde. É uma regra que muita gente finge não conhecer.

Ora, à minha frente, seguia um carro da condução, com alguém que estava a dar os primeiros passos nestas lides do volante. Pois, a meio do cruzamento, o aprendiz atrapalha-se e deixa o carro ir abaixo. Fiquei atrás dele, parado.

Entretanto, avançam os carros do meu lado esquerdo, que ficam impedidos de passar por causa de mim. Tudo isto demorou uns segundos e o atraso dos meus companheiros da esquerda terá sido na ordem dos três segundos. Quatro, vá.

Resultado: um condutor mesmo ao meu lado, a buzinar furiosamente, enquanto gesticula numa linguagem violenta. Porquê? Porque eu estava ali a quebrar essa regra básica de não impedir o trânsito… Com a diferença bastante significativa de que eu não tinha outra opção — e quanto ao pobre aprendiz à minha frente, deixar o carro ir abaixo aconteceu a todos durante as aulas de condução, ou não?

Bem, dirão alguns, isso é muito bonito, mas regras são regras. Se havia hipótese de impedir a passagem, eu devia ter parado antes do semáforo, não é? Devia ter adivinhado que alguém que está a aprender pode deixar o carro ir abaixo. Devia ter calculado. Devia ter esperado. Ora, se seguisse essa lógica absurda, teria um carro atrás de mim a apitar, porque não avançava.

Adiante. Passemos à história das crianças.


Já fui — e espero receber os vossos pêsames — administrador de condomínio. Ora, se metade dos meus concidadãos desesperam de ter de participar numa assembleia geral por ano, imaginem o que será ter de ter reuniões semanais para administrar um prédio.

O meu prédio tem um pequeno pátio interior. Na altura das férias escolares, as crianças ficam até um pouco mais tarde, mesmo durante a semana. Às vezes, atrevem-se a ficar até às dez da noite ou — horror — até às onze.

É aborrecido? É possível. As conversas ecoam pelo prédio e, às vezes, alguns dos petizes até se riem e correm pelo pátio.

Alguns vizinhos, armados com o Regulamento do Condomínio (que está ali ao lado da Constituição e da Bíblia na estante dos documentos sagrados), lá me enviaram mensagens, para ver se travava o abuso. As regras eram claras: a partir das 21h, não pode haver qualquer tipo de actividade no pátio.

Regras são regras, e lá tive de tratar do assunto, o melhor que sabia e pude, com ajuda da empresa de gestão dos condomínios. Avisos no elevador, conversas com os criminosos, e por aí fora.

Estavam os meus incomodados vizinhos no seu direito? Sim, claro. E estavam também no direito de se queixar da falta de civismo das crianças, respectivos progenitores e sociedade em geral. E até estavam no direito de criar missivas violentíssimas, a roçar a má-educação, com aqueles quase insultos passivo-agressivos que levam tudo à frente.


Contei-vos esta história para chegar a esta conclusão: a nossa sociedade é pródiga em acusações de falta de civismo. Se há coisa que o português sabe é que os portugueses já não sabem o que é o civismo.

Curiosamente, essas queixas de falta de civismo costumam sofrer de falta de civismo elevada ao extremo. Porque o civismo também implica alguma tolerância e alguma moderação nas conversas e queixas que fazemos, com ou sem razão.

Aliás, na minha interpretação, o civismo tem duas facetas:

  • (1) Já que temos de viver todos juntos — e nas cidades isto é especialmente importante —, convém preocuparmo-nos em incomodar o menos possível os outros. Se ninguém ligar ao incómodo dos outros, rapidamente a vida se transforma num inferno. Temos todos de aprender a viver em conjunto. É dificílimo. Exige alguma capacidade de contenção, alguma inteligência emocional, aquela urbanidade própria de quem sabe viver entre muita gente.

(Parêntesis: como o que incomoda ou não os outros varia de pessoa para pessoa, a sociedade teve de criar regras explícitas, que possibilitassem a vida em comum sem estarmos a tentar adivinhar o que incomoda ou não o vizinho. Regras como não usar o pátio depois das 21h, mesmo que o nível de incómodo geral seja baixo durante os primeiros minutos depois da hora, ou não usar as máquinas depois das 22h, ou mesmo todas as regras da estrada — que não são apenas uma questão de incómodo, mas também de segurança, como é óbvio.)

  • (2) Para além disso, temos a necessidade de tolerar algumas falhas por parte dos outros. Convém percebermos as circunstâncias em que as regras são aplicadas. Se alguém nos interrompe a passagem porque outra pessoa deixa o carro ir abaixo enquanto aprende a conduzir, ter civismo implica tolerar essa falha. Se há crianças que brincam durante as férias um pouco para lá da hora inscrita num regulamento, ter civismo implica não ser violento nas críticas e tentar resolver a questão o melhor possível, sem criar conflitos com evidente prazer. A tolerância é, também ela, uma virtude cívica. Falta de tolerância também é falta de civismo.

Muitas pessoas acham que o civismo consiste, basicamente, apenas e só no parêntesis acima, sobre as regras. Talvez algumas conheçam bem o primeiro ponto, mas só no que toca aos outros. Quanto ao segundo ponto (o da tolerância), quase ninguém fala dele. Quase ninguém o assume como importante. Quase ninguém tolera os outros (e quase ninguém admite falhar).

E, no entanto, viver em sociedade é respeitar as regras e ter o bom-senso de tolerar algumas falhas, nossas e dos outros, em certas circunstâncias. Ou seja, é perceber que não somos máquinas, que falhamos — e perceber que, se começarmos aos gritos quando nos sentimos levemente incomodados, os nossos gritos vão incomodar mais do que a própria falha.

Bem, mesmo que não concordem comigo, peço-vos uma coisa: sejam educados quando acusarem crianças de brincar fora do que está regulamentado. Pode ser?

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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