Conheci José Cardoso Pires com a Balada da Praia dos Cães, que li vidrado numa viagem ao Algarve, entre piscinas a ecoar frases em estrangeiro, rodeadas de paperbacks molhados e jantares improvisados ao final de tardes quentes dum Algarve muito banal, mas que sabia sempre bem, a férias e muito sol. Estava muito longe da Lisboa dos anos 60 da Balada, mas estava mesmo muito perto: é assim a literatura.
Ora, se a Balada da Praia dos Cães é daqueles livros que quase todos os portugueses conhecem, mesmo que nunca tenham lido ou nem sequer se lembrem do nome do autor, já Alexandra Alpha é um pouco menos badalado que a Balada.
Não vou estar a contar a história ou a convencer-vos a ler, mas deixem-me que vos diga que julgo não ser impossível (na minha muito humilde e parcial opinião) que este livro venha a ser lido daqui a muitas décadas como a pintura do Portugal da segunda metade do século XX, tal como Os Maias são a pintura da Lisboa oitocentista.
Alexandra Alpha é, como no caso d’Os Maias, uma pintura parcial e pessoalíssima, mas também uma pintura divertida, amarga, dolorosa e cheia de surpresas. Aliás, as surpresas começam logo na primeira linha. Afinal, um livro de Lisboa como há poucos começa no Rio de Janeiro:
(Já agora, leiam com muita atenção a descrição do 25 de Abril neste romance (Alexandra Alpha). É um pasmo literário, em que um autor pessimista e desencantado se transforma num menino maravilhado com tudo aquilo.)
Neste livro, temos a Lisboa duma certa franja intelectual — ou as pessoas que se misturam com essa franja intelectual — nesse anos antes e logo depois do 25 de Abril. Por lá navegam personagens inesquecíveis como Sebastião Opus Night, marialva aldeão a correr as noites de Lisboa e que não conseguia ver a cidade de dia, a Maria de óculos com aros muito grossos (essa imagem tão anos 70), que faz par com a Alexandra que olha a cidade duma altura irreal, e Sophia, e o soldado, e o par andrógino do início e todos os outros que povoam uma cidade que não quer o que tem (o regime anterior), mas não sabe o que fazer e se perde em noites de bebidas e conversas.
Uns correm atrás do Americano, para ir comer («Ainda o apanhamos!»); outros correm atrás do próximo bar aberto, à espera de qualquer coisa. Tal como Os Maias, Alexandra Alpha é um livro sobre gente desencantada, mas gente que viveu nas ruas de Lisboa, entre amigos e um copo na mão. E isso, às vezes, é quase tudo.