Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

A ansiedade e a tradução

ansiedade

A ansiedade abunda na nossa profissão: há a ansiedade do cliente, a do gestor de projectos, a do estudante de tradução, a do professor de tradução (ou mesmo a do vendedor de ferramentas de tradução)…

Isto para não esquecer a ansiedade do próprio tradutor — quando, por exemplo, está a olhar para uma frase difícil sem saber se amanhã vai ter trabalho.

Vou tentar fazer um pequeno mapa de algumas destas ansiedades.

O cliente ansioso

O nosso trabalho consiste, se virmos bem, em diminuir a ansiedade do cliente. O cliente tem aquele documento urgentíssimo para traduzir, o prazo do concurso está a acabar, só ele e mais ninguém conhece os termos correctos da sua actividade e tem muito medo de entregar tão preciosos textos a um estranho…

Nós, que trabalhamos neste ramo, lá temos de tentar encontrar soluções para todos estes problemas. É por isso que quase me atrevo a dizer que a ansiedade do cliente é uma grande amiga do tradutor… Sem ela, o cliente nunca poderia vir a apreciar o valor do nosso trabalho.

Mas, admitamo-lo — a ansiedade do cliente é também a nossa grande inimiga. Também a encontramos quando os clientes disparam ao primeiro problema, quando não confiam em nós, quando estão sempre de pé atrás perante estes (o cliente abre aspas) profissionais (o cliente fecha aspas) que vêm das Letras (ai), que andaram a estudar Línguas (ai, ai) e que não percebem nada de tecnologia (ai, ai, ai).

Esta desconfiança é como chumbo nos pés quando começamos a trabalhar — mas não nos resta outra opção do que tentar desatar esses chumbos enquanto trabalhamos. Temos de desfazer com muito trabalho e algum risco a desconfiança com que o cliente nos olha.

O leitor ansioso

Há um cliente de tradução tão especial, mas tão especial que a poucos passaria pela cabeça chamá-lo de “cliente”: estou a falar do leitor de livros traduzidos.

Também aqui a ansiedade impera. Claro que é uma ansiedade muito passageira — quando o tradutor é bom (e é bom muito mais vezes do que admite o senso comum), o leitor esquece-se de que está a ler uma tradução e embrenha-se na história ou no que for que está a ler.

Dito isto, todos sentimos, em muitos comentários às traduções que por aí se lêem, aquilo a que podemos chamar síndroma do milagre: os médicos sabem que, para muitas pessoas, a cura de uma doença será sempre milagre, enquanto a morte dum ente querido será sempre culpa do médico.

Num contexto bem menos dramático, também o tradutor sente esta síndroma: se o livro emperra e é mau, há leitores que acusam o tradutor de não saber escrever e não saber transmitir a magia do Autor (assim, em maiúscula, claro).

Já a qualidade dum bom livro nasce sempre das impolutas mãos do Autor. E, no entanto, bem vistas as coisas, muito do prazer dum bom livro, o prazer das palavras ali mesmo à nossa frente, vem do invisível labor do Tradutor (deixem-me lá pôr a maiúscula só desta vez).

O gestor de projectos ansioso

Abandonemos os vagos prazeres da literatura e atiremo-nos de cabeça para aquilo a que muitos chamam tradução comercial, ou empresarial, ou industrial — ou outro desses termos que assustam aqueles que não vêem a tradução para lá das doces páginas dos meus queridos livros.

O gestor de projectos é essa figura que partilha com o tradutor da invisibilidade que parece ser sina desta profissão.

O que faz este gestor?

Basicamente, tenta arrebanhar para si toda a ansiedade do mundo.

Senão, vejamos: tem de aguentar com as investidas ansiosas do cliente a ver o prazo a passar e a tradução a não aparecer — apesar de o prazo acordado ainda vir bem longe (“mas eu disse para me enviarem logo que fosse possível!”).

Tem ainda de se haver com a ansiedade de não saber se os três tradutores que estão a trabalhar naquele projecto essencial para o mais importante dos seus clientes não vão entrar no Triângulo das Bermudas da tradução, ou porque a internet no centro da Amazónia foi abaixo ou porque afinal o trabalho é mais difícil do que parecia e morreu a terceira tia em sete dias.

Tem de lidar com o computador que parece o mais caprichoso dos mamíferos, tão caprichoso que pára de trabalhar só porque sim — ou talvez seja porque está a pensar na saúde dos nossos olhos (mas sem qualquer consideração pela nossa saúde mental).

Tem ainda que lidar com o ficheiro que mal preparado, a tradução que vem com erros, o cliente que não percebe porque há tanta maiúscula nas traduções alemães, o colega que não percebe porque não aceitamos mais do que trinta projectos por dia — e quando quer descansar, há sempre o estúpido dosmartphone a apitar e outro e-mail a chegar.

Enfim, podemos sempre dizer: há solução para isto tudo! E há, claro!Por exemplo, desligar e ligar o computador. Ou, no que toca ao excesso de e-mails, podemos sempre afogar o telemóvel na banheira. Mas não conseguimos ter todas as soluções em todos os momentos e, à medida que se multiplicam os projectos, os ficheiros, os programas e as pessoas que temos entre mãos, as olheiras vão ficando mais profundas e o nosso corpo começa a dar saltos cada vez que uma porta se fecha.

O gestor de projectos é essa pessoa que parece ter várias bolas na mão, todas elas a ameaçar cair e todas elas mais ou menos frágeis e todas elas a gritar com as suas próprias ansiedades (o gestor de projectos é também uma bola nas mãos do tradutor, por exemplo; mas já lá chegaremos).

Não há pessoa mais ansiosa do que aquele que gere a ansiedade dos outros.

O tradutor ansioso

Ora, e chegamos ao tradutor, aquele que está concentrado nos textos que tem para traduzir, lendo-os com toda a atenção do mundo e escrevendo então novos textos, depois de observar com algum prazer os fios com que se cosem as línguas — isto quando consegue alguns minutos de sossego entre cinco e-mails de dois gestores de projectos, o pagamento à Segurança Social que ainda não fez, o manual da nova ferramenta de tradução que um cliente inventou, dois glossários do cliente incoerentes entre si, três memórias de tradução por limpar, vários currículos por enviar, um site por criar e todo o grande et caetera que dói ao fim de cada dia.

Tudo isto, claro, é parte da vida dum tradutor freelancer. Um tradutor que seja trabalhador duma empresa (de tradução ou não) terá, talvez, um pouco mais de tempo para sentir a pura ansiedade de fazer um bom trabalho — mas mesmo assim, lá aparecerão, por vezes, os medos que a todos tocam sobre o futuro da empresa onde se trabalha — ou então os normais conflitos e chatices de que nenhum local de trabalho está livre.

Já o tradutor freelancer tem de ser ao mesmo tempo tradutor, gestor de projectos, marketeiro, contabilista, técnico de informática e fiscal de si próprio.

Há quem acabe por gostar imenso de ser esta empresa dentro duma só pessoa. Outros há, no entanto, que prefeririam estar sossegados, a trabalhar sem ter de pensar no trabalho que ainda não chegou.


Talvez fosse o momento de começar a apontar para soluções mais concretas para este oceano de ansiedade. Espero vir a ter tempo para isso, mas, para já, o texto vai longo e tenho muito para fazer. A última coisa que me apetece é ficar ansioso por causa do tempo que passei a escrever um texto sobre ansiedade…

(Publicado do Medium no dia 27 de Abril de 2015.)

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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