Ah, agora que entrámos em 2016, vou pronunciar-me: se há discurso que me irrita é o do «antigamente é que era bom» assim, sem mais, só porque sim.
Decidi-me, então, a criar um pequeno catálogo de frases típicas dos que estão sempre a louvar o antigamente sem pensar duas vezes no assunto.
(Já agora, pedia que me dissessem em que ano acabou o antigamente, só para minha orientação. E, se não for pedir muito, já que é tão óbvio que o mundo está tão pior, será que me conseguem apresentar uns dados concretos, uns numerozitos que seja? Já sei, já sei: o mundo de hoje em dia só pensa em números — antigamente não era nada assim. Mas, reparem, o mundo não gosta de ser acusado de todas as malfeitorias sem provas concretas. O mundo é um chato.)
1. «A família está em crise!»
Ui, o divórcio. Ui, as mães adolescentes. Ui, isto e, ui, aquilo. Os mais empedernidos até soltam um bom «Ui» sobre o casamento homossexual — e todas essas modernices sem jeito.
O que me intriga nestes antigamenteiros é que, depois de se queixarem da crise da família, queixam-se de que os pais mimam demasiado os filhos.
Então? Afinal a família está destruída ou os pais mimam demasiado os filhos?
Podem dizer-me: há de tudo!
Sim, exacto. Há de tudo. Como na farmácia — e, já adivinharam: como antigamente.
Declarar, assim como quem sabe tudo, que a família está em crise porque existem famílias que não são perfeitas parece-me excessivo — e, para ser sincero, parece-me também um lugar-comum um poucochinho preguiçoso.
Será que as famílias de 10 filhos eram mais estruturadas do que as famílias pequenas típicas de hoje em dia?
Os pais de antigamente faziam o que podiam e o que podiam, em muitos casos, era muito pouco — aliás, é incrível como muitos, ainda assim, faziam imenso com tão pouco.
Hoje, as condições são um pouco melhores, e continuamos — os pais de agora — a fazer o que podemos.
Ora, aquilo que podemos fazer também sabe a pouco, eu sei — mas não me parece que haja por aí uma epidemia de más famílias como não havia antigamente.
2. «Os pais não sabem educar os filhos!»
Claro que, sendo pai recente, estou mais sensível a estas acusações. E, de facto, às vezes acho que não sei — não é fácil…
Mas será que as gerações anteriores tinham mais certezas e estavam mais bem informadas?
Há maus país nos dias de hoje? Oh, meus amigos, claro que há.
Mas haverá mais maus pais do que antigamente?
Pronto, admito: ali por volta de 1999, esquecemo-nos todos de como criar os filhos. Deve ter sido qualquer coisa que puseram na água…
A julgar pelas opiniões que se ouvem por aí, os pais de agora maltratam os filhos — ou com violência curta e grossa, ou mimando-os sem parar.
Resultado: as crianças devem andar a levar mais porrada do que antigamente, a ter menos atenção dos pais do que há 100 anos, e devem estar a abarrotar de doenças e de problemas disto e daquilo. Aliás, a mortalidade infantil até têm aumentado (ou não…). E ainda por cima têm demasiados brinquedos! Que coisa!
Tenho um filho e tento fazer o melhor possível. Custa-me ouvir essas acusações contra gerações inteiras, que mais não fazem do que o que sempre se fez, mas com o conhecimento e as possibilidades de cada tempo.
Outro exemplo de acusação em que somos presos por ter cão e presos por não o ter: o facto de haver muito menos filhos por casal do que antigamente é interpretado pelos tais antigamenteiros como, simultaneamente, prova do egoísmo dos pais e prova de que estão demasiado obcecados pelos filhos que têm… Decidam-se, por amor da santa!
Reparem: os pais têm menos filhos porque querem ter mais tempo para os que têm. Preocupam-se com a escola onde põem os filhos e com a educação — e até já têm acesso a formas de planear a família (que tempos, Deus meu!).
Se não se vêem com condições para ter um filho e tratar dele como deve ser, não o têm. Malandros.
(Há outro aspecto a ter em conta: os pais de hoje também têm menos filhos porque os membros do casal costumam trabalhar — os dois. Os antigamenteiros talvez preferissem ver as mães em casa o dia todo, a cuidar dos filhos, mas estou em crer que não vão ter grande sorte.)
3. «Os jovens comportam-se cada vez pior.»
Sim, é uma chatice.
Ora, a verdade é que, em muitos países, tem acontecido o contrário: menos crimes juvenis, menos adolescentes grávidas, menos consumo de droga. Uns sonsos, é o que são, dirão muitos.
Não sei como andam as coisas em Portugal, mas não costumamos ser um país muito original nestas coisas. Se alguém tivesse paciência para parar de dizer banalidades contra os jovens e investigar a fundo, se calhar tinha uma surpresa.
Sim, todos conhecemos casos de jovens mal-comportados. Mas não basta pensar nos casos que confirmam o que pensamos. É preciso procurar os casos contrários e comparar tudo, nos dois momentos (antes e agora).
Não é fácil. É mais fácil mandar umas bocas, claro.
4. «Hoje há regras a mais. Vivi a minha infância sem essas regras e sobrevivi!»
Ora, sim, claro. Era tão bom viver nesse mundo livre e saudável, sem as apertadas regras de agora.
Só que aqueles que não sobreviveram não estão cá para dizer: «Raios, que bom teria sido haver uma regra que me impedisse de morrer naquele acidente de carro por não ter cadeira de bebé.»
Sim, hoje há regras para tudo e mais alguma coisa. Hoje as mulheres têm os filhos no hospital, vacinam-nos e até se preocupam com a segurança dos brinquedos (bem, nestes dois últimos casos, convém incluir os pais na coisa). Até andamos a discutir maternidade e paternidade em blogues, em grupos de amigos, com enfermeiras nos centros de saúde — e parece que é tudo difícil e confuso.
Depois, temos de pôr o cinco no carro. Compramos produtos que foram analisados em laboratório. Andamos preocupados com os químicos que andam por aí. Compramos brinquedos que seguem normas de segurança.
(Uma chatice, claro. Ainda por cima, depois, chegamos a casa e ouvimos algum espertalhão na televisão a dizer que não sabemos cuidar dos filhos. Que coisa.)
Há regras parvas? Claro que sim.
Mas também há isto: em Portugal, a mortalidade infantil caiu por aí abaixo. Morrem muito, mas mesmo muito menos crianças do que antigamente.
É por causa das regras? Também. Mas não só, claro: a medicina melhorou, as condições de vida das famílias melhoraram — e, pasme-se, até se come melhor.
(Não me interpretem mal: não sou dos que acha que temos de proteger os filhos a todo o custo, deixando-os «sem defesas», como se diz por aí. Temos de aceitar algum risco e viver com isso. Mas também não sou contra regras de segurança por uma questão de nostalgia mal pensada.)
5. «Hoje come-se pior!»
Mas quem é que come pior? E em comparação a que tempos? E em que classes sociais?
Sim, imagino que certas famílias de certas zonas comam hoje pior: talvez a nobreza do século XIX comesse melhor do que a classe média de hoje em dia — mas mesmo assim tenho dúvidas.
A sério que hoje, em Portugal — em todo o Portugal — comemos pior do que, por exemplo, há 100 anos? Pensemos no país todo, na muita miséria que havia. (Sim, eu sei, ainda há, mas havia um pouco mais. Só um pouco.)
Será que a alimentação era mais variada? Mais rica em nutrientes? Com mais higiene?
Bem, admitamos que se comia melhor. Se assim era, haveria mais doenças, certamente. Mais doenças, logo, as pessoas morriam, em média, mais cedo.
Será que é verdade? Nem por isso…
Enfim, não digo que não se comesse bem em certas zonas (nos anos bons). Só digo que a coisa não é tão óbvia assim.
6. «Hoje ninguém lê!»
Deixemos a comida e a família e os filhos. Noutros campos, temos gente que jura a pés juntos que hoje se lê muito menos. Que já ninguém liga à literatura. Que os livros são objectos do passado e hoje os jovens não querem nada disso.
Como ninguém nos diz quando era esse antigamente, façamos o exercício com 1916.
Será que em 1916 havia mais livrarias? Mais gente a ler em Portugal? Mais editoras? Mais jornais e revistas? Mais críticas literárias? Mais blogues de livros? Mais jovens a ler por esse país urbanizado e culto que era o Portugal de então?
Querem avançar uns anos? Será que em 1974 o número de livros vendidos era superior ao de hoje?…
Penso que o leitor deste blogue está a ver a ideia.
Claro que os antigamenteiros caem num erro básico: confundem as suas recordações de certos ambientes e certas pessoas com todo o país.
Sim, aquele país que hoje põe os jovens todos na escola, mal ou bem (às vezes mais mal que bem, como dizem muitos — mas põe-nos lá quase todos) — esse país lê mais e compra mais livros do que país do tal antigamente. Mas estou a falar do país todo.
Já em certas ruas de uma certa Lisboa, talvez nem por isso. Mas só talvez. Nem disso estou certo.
7. «Não há escritores como antigamente…»
Ora, do século XIX sobreviveram os melhores. Hoje lemos Garrett, Camilo e Eça (e talvez Herculano e Antero). Há quem leia mais uns quantos, claro, mas quase que aposto que os estará a estudar por motivos profissionais.
Deixem-me fazer uma previsão: daqui a 100 anos também leremos quatro ou cinco grandes escritores do século XX (quais serão, não faço ideia) e também se dirá que, nesse início do século XXII, já não há escritores como antigamente.
8. «Fala-se cada vez pior…»
Desta ideia falsa já falámos muito por este blogue. E vamos falar mais, e muito em breve.
Neste ponto, os antigamenteiros estão a cair no mesmo erro já descrito acima: comparam um passado muito seleccionado com tudo o que vêem no presente.
Isto é uma tendência tão forte que acabam convencidos que, num país com uma taxa de analfabetismo elevadíssima e em que a escolaridade era quase um privilégio, a população falava melhor do que hoje em dia.
Falava tão bem ou tão mal como hoje: com a particularidade de muito menos gente usar o português padrão e de poucos escreverem com regularidade.
9. «O mundo está cada vez mais violento.»
Temos terrorismo, mas até parece que o terrorismo foi inventado hoje! Não, não foi. Antigamente, também havia: basta pensar nos anarquistas do final do século XIX.
E havia mais (se recuarmos o suficiente): perseguições às mulheres excêntricas (vulgo, bruxas), judeus, heréticos, etc.
As famílias iam ver execuções em grupo, todas contentes.
Queimar gatos era um passatempo.
As guerras eram tão comuns que nem se notavam.
Aqui, há números e parecem apontar para isto: o mundo está cada vez menos violento. Incrível, não é?
(Já agora, para quem ficar confuso e estiver a pensar «Então porque vemos tantas notícias de violência?», aconselho a pensar no que se passaria num mundo dividido em tribos em que todas as tribos soubessem dos crimes e guerras de todas as outras tribos: o mundo, de repente, pareceria muito menos pacífico do que se soubéssemos apenas daquilo que acontece ao pé de nós, não acham?)
10. «O mundo vive uma crise de valores.»
Esta frase é tão vazia de conteúdo que nem sei o que dizer.
Quais valores, especificamente?
Os valores religiosos? Talvez sim, mas atrevo-me a dizer que todos os que põem os valores da religião à frente de tudo o resto acabam por ser perigosos. Aliás, sou a favor de incentivar uma boa e simpática crise de valores na cabeça de alguns fundamentalistas…
Os valores humanos? Quer dizer que hoje se ajuda menos os mais pobres e necessitados? É isso? Tenham lá calma com as conclusões e pensem em todas as organizações (incluindo as religiosas) que andam por aí a trabalhar e a ajudar.
Valores familiares? Já falámos disso lá em cima.
Sinceramente, se não especificarmos o valor em causa, dizer esta frase tão pomposa e tão vazia não vale de nada. É apenas uma maneira de estar a dizer coisas sérias sem precisar de pensar muito.
Já sei, já sei… Com o pensamento binário que cada vez mais grassa por aí (estou a ser antigamenteiro só para ver como é), vão certamente achar que, se não acho que vivemos no pior dos mundos, só posso estar convencido que vivemos no melhor dos mundos.
Ora, balelas. O mundo está melhor nalguns aspectos, noutros nem por isso — e é tudo mais complicado do que fazem crer as certezas da trupe do antigamente-é-que-era-bom.
Só para fazer a vontade aos sedentos de pessimismo — e para que não me julguem já um completo e inútil ingénuo —, querem que vos diga dois aspectos em que me parece que mundo está a andar para trás? Aqui vão dois: o clima está pelas horas da morte (ou a caminhar para lá) e a desigualdade é um problema (não porque os pobres do mundo estejam cada vez mais pobres, que não estão, mas porque os ricos estão muito mais ricos).
A lucidez, amigos, não é ser pessimista à força. A lucidez é mais isto: tentar perceber o que está mal e o que está bem e mudar de ideias perante novos dados. Não é declarar que isto é uma choldra e, pronto, não se fala mais nisso.
Só sei que cheguei aos 83 anos e estando,consequentemente vivo, estou convicto que todas as sociedades são abrangidas ciclicamente por ascenção e queda.Altos e baixos de todos os tempos.O admirável mundo novo ,nasce todos os dias ,para deslumbrar os optimistas e irritar os cépticos.
O nosso tempo é este.O que vivemos dia a dia.E o resto é paisagem,como dizia o Eça, mas que poderia ter sido dito por Lobo Antunes
Ah ! Sr. Marcos Neves.
Nada como um bom desabafo, né mesmo?
Penso que “antigamente era bom” nada mais seja do que a saudade que a pessoa sente da sua juventude.
Cordialmente.
PP
Uma boa crónica. Bem temperada, sem sal mais nem a menos. Sem minúcias, enfim bem apaladada e a deixar um sorriso em quem a leu.
Apesar do antigamente não ser o bom, penso que, como já foi anteriormente referido, o que temos é um não equilíbrio, em que oscilamos entre o bom e o mau, entre o certo e o errado. As sociedades evoluem melhor através de choques, do que através de transições suaves. Os jovens são mais violentos? Realmente parece-me que sim, mas o que é a violência dos jovens? É entre géneros ou é entre eles e os mais velhos? A democracia trás a liberdade da escolha. O que esperamos é que seja com responsabilidade, mas desde quando são os jovens conformados? Se não houver inconformidade não existe mudança.
Uma crónica que eu gostaria de ter escrito, até para me retratar em relação a algumas opiniões muito pouco fundamentadas.