Uma cidade é uma amálgama de diferentes épocas e diferentes ideias. Reparem nos edifícios, nas paredes pintalgadas com palavras de ordem de diferentes épocas, um palimpsesto de sonhos, indignações e palavras que vão e vêm como as ondas (às vezes, aparecem alguns tsunamis que deixam marcas durante décadas).
Os edifícios são como as células do corpo humano: aparecem, enchem-se de actividade, por vezes ficam em ruínas, desaparecem e são substituídos — e a cidade fica a mesma, tal como nós continuamos a ser quem somos mesmo que já não tenhamos nenhuma das células com que nascemos.
(No outro dia, estava a passar por Miraflores, numa rua à sombra da CRIL, e vejo no meio de prédios indistintos dos anos 80 uma espécie de relíquia: prédios bem mais antigos, como se um pedaço de rua doutro sítio qualquer tivesse sido arrancado e arrumado ali. E, no entanto, o que aconteceu foi outra coisa: a rua era toda assim e foi sendo apagada e reconstruída, deixando apenas aquele dente de leite feito de velhos prédios.)
As cidades fazem-se também de planos que começam e não acabam, arranques de ideias geniais que se ficam pelo caminho — são cumpridas até ao fim, com mais ou menos desvios às contas, mas que acabam por só valer por aquilo que se faz depois.
As cidades são mesmo como o corpo humano, mas duram milénios e não algumas décadas. E nós por lá passamos, também como as células: nascemos, morremos e às vezes até mudamos de cidade — e as cidades ficam.
O que tem isto a ver com línguas?
Pouco ou nada — mas já perceberam que este blogue tem muitas outras manias para lá da mania das línguas.
Mas reparem: já pensaram que as palavras que usamos são também ruínas reconstruídas das palavras que foram usadas ao longo dos séculos, adquirindo novos usos, perdendo significados e ganhando outros, mudando de modas e de gostos e navegando pelas classes sociais e pelas regiões e até pelas línguas?
Da mesma forma, cada um de nós vai usando as palavras que aprendemos, mudando-as imperceptivelmente e deixando-as para as gerações futuras.
Nem as cidades nem as palavras são nossas e no entanto são criadas por nós todos os dias.
É estranho, mas é assim.
Gostei muito deste artigo. Parabéns, adoro o blogue Língua e Outras Manias! 🙂