Há factos que parecem simples de verificar — por exemplo, será que Saramago usava vírgulas?
Digo isto porque corre por aí a ideia de que não há vírgulas nos livros de Saramago.
Ora, se alguém se der ao trabalho de abrir uma qualquer obra do escritor, lá encontrará o simpático sinal de pontuação em todas as santas páginas…
Então, donde vem a ideia? Não sei. Talvez do facto de Saramago usar, nos seus romances, uma forma peculiar de assinalar o diálogo: em vez do tradicional dois pontos, parágrafo, travessão, o que vemos são… vírgulas! Antes da fala de uma personagem, Saramago põe uma vírgula.
Ou seja, o escritor usa mais vírgulas do que o habitual. E, no entanto, a história corre por aí virada ao contrário: Saramago, no universo alternativo em que muita gente vive, não as usa.
Enfim, seja qual for a origem da história, é mentira. As vírgulas estão lá, bem ou mal. Estamos perante uma daquelas falsidades virais, que estão longe de ser um fenómeno recente.
Este é, portanto, um boato antigo: «Saramago não usa vírgulas!» Já me deu para desmontar este mito em vários sítios: no meu blogue, num livro — até no Facebook!
Ora, foi nos terrenos pantanosos do País de Zuckerberg que percebi, pelos comentários, que a crença nas vírgulas dependia do clube de cada um: aqueles que gostavam de Saramago afirmavam que, sim, as vírgulas de Saramago existem! Os comentadores que não gostavam do escritor negavam a existência de tais bichos…
Ora, as vírgulas estão lá — goste-se ou não de ler o escritor! Aliás, continuam lá, gostemos ou não da sua peculiar forma de pontuar…
Numa dessas discussões, o homem com quem eu estava a discutir — que odiava o escritor e, por isso, não acreditava nas suas vírgulas — garantia-me que já tinha lido um livro dele (para mal dos seus pecados) e nunca tinha encontrado vírgulas.
Pasmei. Uma coisa é uma pessoa não acreditar nas vírgulas de Saramago por nunca ter lido um livro dele. Acontece. Outra bem diferente é ler um livro inteiro sem reparar nas vírgulas…
Atrevi-me a pegar n’O Ano da Morte de Ricardo Reis e a fotografar uma página. Publiquei-a no comentário: «Está a ver? Quantas vírgulas vê aqui?» Eram muitas, as ditas vírgulas…
O meu interlocutor não hesitou: «Isso deve ser uma edição diferente da minha!»
Desisti.
Ao contrário do que podemos pensar, ninguém está imune a cair na tentação de olhar para um facto simples da vida e do mundo com os óculos pintados por esta ou aquela crença. Sei lá eu o que ando por aí a tresler… O melhor é estarmos atentos e desconfiar das nossas certezas.
No entanto, muitas pessoas julgam-se imunes a estes erros óbvios: sabem-se inteligentes, informadas e, assim, imunes a parvoíces deste tipo. Ora, estou convencido que este tipo de erro não é uma questão de estupidez. Falando desta particular mentira, algumas das pessoas com quem discuti a questão pareciam-me bem informadas e muito pouco estúpidas.
Aliás, a mais delirante das teorias da conspiração tem alguns defensores muito inteligentes — a imaginação necessária para inventar argumentos a favor da teoria da Terra plana é sintoma de alguma inteligência… E muitos usam essa mesma inteligência para melhor se convencerem a si e aos outros do disparate.
Ou seja, o meu caro leitor pode ser a pessoa mais inteligente do mundo e, mesmo assim, cair numa ou duas patranhas. (Talvez não caia em tantas como o comum mortal, mas não está imune.)
Vale a pena discutir estas questões quando o outro não quer ver? Custa um pouco, mas não convém desistir. Sim, é verdade que às vezes não vale a pena. Às vezes, quem não quer ver não vê mesmo. Mas acredito que haverá casos em que uma boa conversa nos leva a bom porto. Gosto de pensar que ainda é possível mudar de ideias perante os factos. Ainda tenho esperança de mostrar uma página de Saramago a algum céptico das vírgulas e provar que aqueles rabiscos, ali debaixo do seu nariz, existem mesmo…
(Crónica no Sapo 24.)
Estou num Congresso de três dias sobre José Saramago. 20 anos após ter recebido o Prémio Nobel.
Terminou o segundo dia hoje e não tenho ideia de alguém ter referido a questão da pontuação, uma questão que ele tornou estilística.
Ouvi-lhe explicar a ele, J. Saramago, a razão da opção, que achei curiosíssima.
Quanto à questão das teimas e opiniões e casmurrices de alguma gente, confesso que não conheço pior que as redes sociais. Parece-me haver ali qualquer coisa que estimula a teima como estimula a maledicência. Não é uma doença global, felizmente.
Só li dois livros dele e confesso que não me entusiasmaram muito.
Talvez essa crença das vírgulas tenha origem nos parágrafos muito compridos apenas com vírgulas, o que torna o discurso ausente das pausas das outras pontuações.
Será?