Há pouco, na discussão sobre o «deslargar» no Observatório da Asneira, deixei a referência dum dicionário onde o verbo aparece. Um dos que não concorda com o uso do «deslargar» diz-me que o dicionário tinha um erro na definição (o verbo não seria intransitivo, segundo ele). Tudo bem. Respondi apenas:
Simplesmente citei um dos imensos dicionários que inclui a palavra.
Ora, em vez de continuar a argumentar, outra pessoa do lado dos antideslargas responde-me isto:
O adjectivo “imenso” deve usar-se para qualificar algo muito grande, enorme. Para qualificar um grande número de coisas usa-se o qualificativo “inúmero”.
A questão é mesmo esta. Não está errado usar “imenso” para referir um grande número (porque pode sempre subentender-se que a palavra “número” segue o adjectivo). Mas, se existe uma palavra mais adequada, mais correcta, por que razão se usa a menos adequada, menos correcta?
Ainda larguei uma boa gargalhada. Respondi isto:
Ainda há poucos dias escrevi sobre esta estratégia: em vez de argumentar, apontam-se erros de português, para atrapalhar a outra pessoa. Eu sei, eu sei, escrevo pessimamente. Um dia espero vir a melhorar.
E deixei a ligação para o texto em que escrevia sobre o assunto. O que dizia eu nesse texto?
Dizia isto:
Enfim. A conversa, para mim, acabou ali. (Vou só lá deixar a ligação para este artigo.)
Mas agora, a pergunta: será que dizer «imensos dicionários» é mesmo erro (ou «menos correcto», na fórmula do meu interlocutor)?
Podia ser. Ninguém está livre de dar erros e ando sempre a ver se algum me escapou. Aliás, o segredo n.º 8 do livro de que ando por aí a falar é esse mesmo: todos nós damos erros de português. Aliás, na mesma frase tenho lá uma palavra que, essa sim, pode ser considerada um erro (mas não vou dizer, vejam se apanham…).
Neste caso dos «imensos dicionários», não me parece que seja erro. Segundo a pessoa que me quis bater na cabeça, «inúmeros» é para substantivos contáveis e «imensos» para não contáveis.
Só que não. Para perceber porquê, é preciso ir além das lógicas simplistas que nos servem na ocasião. O que um linguista faz é outra coisa: estuda a língua sem ideias pré-concebidas, tentando perceber as regras reais, que não são assim tão fáceis de compreender.
Neste caso, de forma resumida, em português, das seguintes frases, apenas uma é agramatical (ou seja, erro):
- *Aquele livro é inúmero.
- Aquele livro é imenso.
- Estão ali inúmeros dicionários.
- Estão ali imensos dicionários.
(O * é a forma que os linguistas têm de assinalar as frases agramaticais.)
Na gramática portuguesa real, «inúmeros» quer dizer «muitos», mas «imensos» quer dizer «muitos», mas também «grandes». A regra é mais complexa do que parecia a quem me tentou passar uma rasteira, falando dum suposto erro meu quando estávamos a discutir o tal «deslarga». As duas palavras («imenso» e «inúmero») têm significados que se sobrepõem, mas não coincidem. São sinónimos parciais. A minha frase estava correcta, tal como estaria «inúmeros dicionários». Mas se usasse «inúmero» para significar «grande», já estaria a dar um erro (um erro que, felizmente, não se vê muito por aí).
E assim se criam mitos da língua: dá jeito dizer que alguém está a dar um erro? Inventa-se o erro! É fácil, é barato e ajuda quem não se importa de usar esse tipo de estratégia numa qualquer discussão sobre outro assunto…
(Só uma nota: sim, eu sei que há umas décadas o uso de «imensos» como sinónimo de «muitos» ainda era visto com hesitação por alguns gramáticos tradicionais. Mas a gramática real da norma-padrão da língua portuguesa, hoje em dia, funciona mesmo assim, pelo que me é dado a observar.)
Adenda. Por lapso, numa primeira versão desse artigo juntava dois interlocutores num só. Um deles chamou-me a atenção e corrigi o texto. Estava a debater com duas pessoas, não apenas com uma.
Adenda 2. A mesma pessoa acabou por se revelar irritadíssimo comigo, porque a minha argumentação se baseia na ideia de ele ter apontado para um erro meu, quando na verdade disse apenas que a minha expressão era «menos correcta». Acusa-me então de ter provocado o episódio de propósito e de estar, talvez, a mando de alguém. E bloqueia-me. Bolas, lixou-me o dia. Fui bloqueado por um pseudónimo! Mesmo assim, ainda lhe respondi: «Refiro textualmente o que diz [“menos correcto”]. Não chamou erro, mas desviou a discussão para o meu português. A verdade é que, naquele momento da discussão, apontar o dedo ao português da pessoa com quem se está a discutir é um exemplo claríssimo da tal estratégia que refiro.»
Respondendo ao desafio, na primeira leitura da frase, não vi nada de estranho. Com um olhar mais crítico, fez-se luz…
“Simplesmente citei um dos imensos dicionários que INCLUI a palavra.” Parece haver um problema de concordância. Se o “que” representa o antecedente “dicionários”, o verbo tem de ir para o plural: INCLUEM.
Se Deus inventou a língua, a gramática só pode mesmo ter o dedo do Diabo!
É isso mesmo! Relendo a frase, também me parece que o verbo devia estar no plural…
Um dia destes, tenho de lhe pagar um café: ganhou o primeiro desafio do blogue!
Em contrapartida, levarei uma das minhas especialidades para acompanhar o café: bombons de chocolate negro com recheio de marmelada de nêspera biológica! 😉
Apesar da minha parca formação académica (4ª classe) ocorre-me à ideia que a frase “imensos dicionários” deveria ser substituida por “imensa quantidade de dicionários” ou “inúmeros dicionários” porque, pareceu-me, que ficou subentendido que existem dicionários muito grandes. P. S. Não entro em discussões pois não me considero suficientemente dotado de conhecimento para o efeito, apenas quis fazer constar como nós, os velhotes dos anos cinquenta, ainda estamos atentos a estas coisas do linguajar
Obrigado pelo comentário! Não se preocupe, o blogue é mesmo dedicado a todos os que gostam do português, em qualquer idade, concordem ou não com cada texto em particular.
No que toca à palavra «imensos», sempre a li e usei como tendo dois significados: «muito grandes» e «muitos». Mas nem sempre as palavras têm os mesmos significados em todas as regiões, gerações ou até famílias.
Espero que volte e que goste dos textos que vou deixando por aqui.
Do primeiro parágrafo o mesmo erro: “um dos que não concorda”. Isto vai acabar por ser formalmente correto porque a gramática tem de seguir a oralidade e o senhor é prova de que a oralidade já está entranhada.
Apenas uma curiosidade: não me consta que em nenhum lugar do Brasil se use imensos como inúmeros, apenas como extremamente grandes. Sou brasileiro do estado de São Paulo.
Quem me dera ter a sua paciência ! …
E mais algumas aqui: http://observador.pt/especiais/praga-dos-vocabulos-estrangeiros-nao-sabemos-usar-esta-portugal-perdido-na-traducao/