- Depois da condenação aos ataques ao Charles Hebdo, começou a discussão sobre os limites à liberdade de expressão. Nada contra debater tão importante assunto, mas, neste contexto, faz tanto sentido como debater a presença de mulheres num beco escuro à noite depois de notícias de violações. Sim, há comportamentos de risco das vítimas, mas será que esse é o assunto mais importante? Não será mais importante debater a culpa dos violadores e dos terroristas?
- Mas, lá está, se temos liberdade de expressão, temos de aceitar debater essa mesma liberdade de expressão, mesmo quando parece fazer pouco sentido. Ora, parte do debate de ideias deve fazer-se na nossa própria cabeça. Ao contrário do que julgam algumas pessoas, o espírito crítico não é gostar de criticar os outros. É saber analisar as nossas próprias ideias, atacando-as para ver como se aguentar à bronca. Assim, é importante pensarmos nas ideias com as quais não concordamos.
- Neste sentido, tenho lido alguns argumentos contra a liberdade de expressão. Há uns dias, li uma ideia contra a liberdade de publicar cartoons de Maomé que me deixou intrigado. É uma boa ideia com a qual não concordo e gostava de explicar porquê. Um leitor do site de Jerry Coyne diz que devemos respeitar a sensibilidade muçulmana neste ponto, apresentando a seguinte comparação: para um muçulmano, ver estes cartoons sobre Maomé é o mesmo que, para qualquer um de nós, ver um cartoon de um filho nosso espalhado pelo mundo inteiro (e, para explicar melhor o sentimento de pudor por parte dos muçulmanos, o leitor diz que devemos imaginar um cartoon dum filho nosso todo nu).
- Ora, antes de pensarmos se a comparação é válida, temos de perceber por que razão defendemos a liberdade de expressão mesmo no que toca às ideias religiosas. Defendo que ninguém tem o direito de impedir que ideias ou religiões sejam alvo de crítica ou mesmo de sátira, por mais maldosa que seja. Se há algo a dizer, responde-se com argumentos, ideias, indignação escrita — mas nunca com ataques directos às próprias pessoas. Para quem acha que há ideias que são sagradas, lembremo-nos que a liberdade de expressão tem sempre dois sentidos: os críticos podem ser, por sua vez, criticados e quem satiriza pode ser satirizado.
- Mas porquê? Não seria razoável defender certas ideias da crítica? Tendo em conta a forma como muitas pessoas sentem qualquer crítica à sua religião como um ataque pessoal, não devíamos evitar este tipo de brincadeira ou este tipo de ataque à religião? A resposta só pode ser negativa enquanto estivermos a falar de ataques às religiões enquanto sistemas de ideias. Atacar os muçulmanos enquanto grupo de pessoas é preconceito; atacar os judeus enquanto pessoas também é preconceito; o mesmo se aplica aos cristãos e a qualquer grupo. Agora, o direito de analisar, criticar e mesmo satirizar qualquer ideia é essencial para a saúde das nossas sociedades.
- Pensem nisto: a religião cristã já foi violentíssima. Foi sujeita a um processo de crítica (muitas vezes em sociedades onde essa crítica era proibida) e, assim, humanizou-se. A crítica foi externa e interna: também dentro da Igreja houve evolução no bom sentido. Ora, quanto mais impedirmos a crítica livre às ideias, mais estas se podem transformar em monstros incontroláveis. Quase diria que devemos proteger a livre expressão especialmente no que toca a estes pontos sensíveis da nossa humanidade: religião, política, nacionalismo, economia… Da mesma forma, o Islão já foi mais violento (mas também mais pacífico) e há várias correntes e interpretações: limitar a liberdade de crítica e análise é dar um balão de oxigénio aos mais fortes, ou seja, aos terroristas.
- As ideias religiosas devem estar sujeitas a debate: devemos defendê-las ou atacá-las de acordo com o que pensamos e devemos ter o direito de mudar de ideias, pensar melhor no assunto, ouvir os argumentos de todos os lados sem ter medo de levar porrada ou um tiro na cabeça (ou um processo em tribunal).
- Da mesma forma, se impedirmos a discussão de certos assuntos ou proibirmos a expressão de certas ideias, é certo que esses assuntos e essas ideias irão ganhar força. O ideal é mesmo discutir tudo abertamente. Assim, mesmo ideias francamente feias como o racismo, o fascismo e outros que tais devem ser livremente discutidas, para que não fiquem a fermentar, escondidas por aí. Mesmo o preconceito deve ser livre, tal como livre deve ser o nosso direito de denunciar e atacar o preconceito.
- Voltando à comparação entre um cartoon de Maomé e um cartoon duma criança. A comparação parece inteligente e talvez transmita, de facto, o que sentem alguns muçulmanos ao ver tais cartoons. Mas daí até advogarmos a proibição ou contenção da sátira e do humor para não ofender alguém vai um passo que não devemos dar, porque essa liberdade é essencial (como vimos acima).
- Então quer dizer que devemos permitir cartoons dos nossos filhos todos nus? Obviamente que não! A segurança das pessoas que estão vivas — e em especial das crianças — está à frente da liberdade de expressão. Ninguém tem o direito de pôr em causa a segurança do meu filho: mas todos têm o direito de atacar as minhas ideias religiosas (ou outras), e eu o direito de as defender (ou até de mudar de ideias).
- Em suma: só devemos colocar limites à liberdade de expressão se essa liberdade puser em causa a integridade física de alguma pessoa ou atacar alguém que não se pode defender. Dir-me-ão alguns: Maomé é uma pessoa. Maomé foi, de facto, uma pessoa há muitas centenas de anos, mas hoje a sua imagem representa uma série de ideias que pode ser criticada ou defendida, satirizada ou idolatrada. Da mesma forma, um cartoon do Menino Jesus (ou do papa com um preservativo no nariz, pois o papa enquanto tal representa ideias e instituições) tem de ser permitido e protegido, mesmo que nos ofendesse pessoalmente. Já um cartoon dum menino que nasceu ontem está absolutamente fora de questão.
- Em resumo: as pessoas são mais importantes do que as ideias: não podemos pôr em causa a segurança de crianças e outras pessoas. Mas o direito de criticar as ideias dos outros deve ser protegido, porque nos ajuda a encontrar as melhores ideias e isso, a longo prazo, é uma forma de nos defender a todos, enquanto pessoas.
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