Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

1. Sabias que és feito de poeira de estrelas?

O dia em que tu nasceste

Fomos a correr para o hospital: já lá tínhamos estado no dia anterior e desconfiávamos que este seria outro falso alarme. Mas não era: vinhas mesmo aí.

Nasceste a chorar, a tua mãe a rir — porque eu tinha entrado na sala de partos com os óculos embaciados e deu-lhe para rir, a ela, no meio do nervosismo que foi pôr-te no mundo. E, claro, começámos os dois a chorar quando nasceste. Já nasceu tanta gente no mundo e para nós era como se fosses o primeiro do universo.

Horas depois, vim cá fora, dormias tu e a tua mãe. Olhei para as estrelas.

Agora podia começar a dizer que pensei em tudo o que te vou descrever abaixo, mas nada disso: dessa noite, no frio da noite de Outubro, lembro-me das estrelas (elas estão sempre lá), mas não me lembro do que pensei.

Lembro-me, isso sim, do que sentia: qualquer coisa que não tem uma palavra que a descreva. Um medo e um aperto e uma vontade de viver que não conhecia. No meu bolso, o telemóvel fervia de mensagens no telemóvel dos amigos e da família, a nossa tribo, e a cabeça não parava, o corpo todo era outro, a vida dava um salto.

Ah, ainda te hei-de falar da extraordinária sucessão de bichos e de pessoas que foi necessária para apareceres tu — e que não pára aqui, a não ser que venha daí um asteróide que ponha um ponto final na história (é pouco provável). Mas não falemos disso — ainda. Para já, pensemos apenas na matéria-prima de que foste feito.

Tu, a chorar, ainda sujo, acabado de nascer nesse acto tão natural e tão tremendo, és feito de quê? Nós, humanos, bichos com a mania que somos inteligentes, somos feitos de quê?

O que está no coração das estrelas

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Nebulosa de Órion, pelo telescópio Hubble.

Ora, olha para o céu: o material de que és feito foi criado nas estrelas.

Sim, és feito do mesmo material que aqueles longínquos pontos luminosos que vês lá em cima. O universo, pouco depois do Big Bang, era quase só hidrogénio e hélio. Ora, esses primeiros átomos começaram a aproximar-se uns dos outros por causa da gravidade, acabando por formar estrelas.

Ora, mas tu não és feito só de hidrogénio e de hélio. Os outros elementos de que se compõe o universo (ferro, magnésio, carbono, oxigénio e um grande etc.) foram criados nos núcleos das estrelas e espalharam-se pelo espaço quando a primeira geração desses monstros quentes explodiu, em supernovas.

Espero estar a explicar isto bem. Digo de novo: o carbono e os outros materiais de que és feito surgiram no coração das estrelas, quando a pressão imensa da gravidade do peso desses monstros empurrava os átomos de hidrogénio e de hélio uns contra os outros até que eles cediam e se juntavam em elementos mais pesados.

Depois, as estrelas explodiam e espalhavam essas sementes à sua volta. O material, disperso em nuvens de poeira e gás, começava de novo a rodar em redor de si mesmo, pela força da gravidade, até que surgiam novas estrelas e, à volta dessas novas estrelas, planetas. As nossas estrelas e os nossos planetas são feitos de restos de outras estrelas.

Uma dessas estrelas mais novas é o Sol e um desses planetas é a Terra. E tu, como parte deste planeta, és feito dos materiais criados no coração de estrelas que já morreram.


Já agora, sabias que existem berçários de estrelas? Há sítios na galáxia onde estão a ser criadas novas estrelas. Aqui está uma fotografia real dum desses berçários, na Nebulosa de Águia (o que vemos são nuvens de poeira e gás, dentro das quais as novas estrelas são formadas pela força da gravidade):

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Mas como sabemos de que são feitas as estrelas?

Hoje é tão comum estudarmos a composição das estrelas que nem pensamos como é quase impossível sabê-lo. E, no entanto, o quase bastou-nos.

Sim, o Sol está bem perto. Mas como sabemos que as outras estrelas são como o Sol? E, aliás, como sabemos do que é feito o Sol? Nunca lá pudemos ir escavar, que aquilo é quente como o raio.

Repara que nunca enviámos uma sonda às outras estrelas: nem podemos fazê-lo!

Porquê? Porque as estrelas estão extraordinariamente longe.

As estrelas estão mesmo muito longe. A estrela mais próxima é Proxima Centauri. Está tão longe que não tenho palavras para descrever quão longe está e mesmo os números não ajudam muito. Posso dizer, como se isso ajudasse, que Proxima Centauri está a 9 460 730 472 580 quilómetros do Sol. Não é já ali na esquina.


Voyager
Voyager 1

Só para perceberes melhor quão longe é isto, quero falar-te do objecto humano que está mais longe da Terra: a Voyager 1.

A Voyager 1 foi lançada pela NASA em 1977. Ajudou-nos a compreender melhor os planetas Júpiter e Saturno. Depois, lá continuou pelo espaço. Só há poucos meses saiu do Sistema Solar. E não é que ande devagar: anda à bonita velocidade de 17 quilómetros por segundo. Faz as contas: é mesmo muito mais depressa que o mais rápido dos aviões. Estamos a falar duma nave que iria de Lisboa ao Porto em menos de 20 segundos!

Esta pequena nave espacial não vai em direcção à estrela mais próxima. Mas vamos imaginar que sim, que ia em direcção a Proxima Centauri. Será que já lá estaria a chegar, quase 40 anos depois de partir?

Nem por sombras.

Se nós estivéssemos em Lisboa e a Voyager 1 em Vila Franca de Xira, a estrela mais próxima estaria na China! E se a nave demorou 40 anos a chegar a Vila Franca, imagina o tempo que demora a chegar à China.

É por isso fácil de perceber que, até ao século XIX, todos achássemos que era impossível saber de que são feitas as estrelas. Se há algum tipo de conhecimento que parece absolutamente inacessível é exactamente isto: saber de que são feitas as estrelas.

Então, mas como sabemos? Como é que conseguimos perceber de que são feitas as estrelas, chegando, assim, à conclusão de que somos feitos da mesma matéria que esses astros longínquos, mais longe do que conseguimos imaginar?

Descobri o truque ao ler o livro Unweaving the Rainbow, de Richard Dawkins. O truque está na luz e nos prismas que a decompõem.

optics-113359_640Como sabemos, a luz pode ser decomposta num espectro. A luz branca (ou de outra cor), ao passar por um prisma, divide-se nas várias cores.

Ora, neste espectro, é possível encontrar umas barras negras, chamadas linhas de Fraunhofer, por terem sido identificadas pela primeira vez pelo físico alemão Joseph von Fraunhofer.

Estas linhas aparecem em cima do espectro da luz decomposta:

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Esta é a imagem da decomposição da luz do Sol, onde podemos encontrar essas barras negras.

Estas barras existem por razões que só a física quântica explica, mas permitem saber a composição química das estrelas. Isto porque cada elemento (hidrogénio, hélio, oxigénio, etc.) tem um impacto próprio e inalterável na distribuição dessas barras. As barras são como as impressões digitais da matéria que está dentro das estrelas. Aliás, a técnica também é usada em laboratórios na Terra — podes saber um pouco mais no artigo da Wikipédia sobre espectroscopia.

Um astro que não emite luz (a Lua, por exemplo) terá uma composição interna que apenas é possível conhecer indo lá e escavando. Já no que toca a uma estrela, se decompusermos a sua luz e lermos as tais barras, podemos saber não só a composição, como a idade da estrela e mais umas quantas informações curiosas. Por isso, foi mais fácil descobrir de que são feitas as estrelas do que a composição da nossa vizinha Lua.

Ou seja, quase sem querer, os desenvolvimentos da óptica e a nossa imaginação prática levaram-nos a descobrir um truque para revelar os segredos das estrelas.

Mais alguns destes truques depois, e lá conseguimos perceber, ainda com muitas falhas, a história do Universo e a maneira como o material de que somos feitos foi criado no coração das estrelas. E até descobrimos que o universo começou num Big Bang. Mas sobre isso falamos depois.

E a Voyager, alguma vez voltará à Terra?

Imagino que queiras saber o que vai acontecer a esse robot simpático que mandámos pelo espaço fora. Vai voltar à Terra?

Não. A simpática Voyager 1, 40 anos depois, ainda consegue transmitir algumas informações, mas daqui a uns 20 anos a sua energia esgotar-se-á e ficará para sempre a andar pelo espaço sideral. Daqui a 300 anos, entrará na nuvem de Oort, que irá percorrer durante 30 000 anos. Nunca chegará a Proxima Centauri mais próxima porque vai noutra direcção. Mas não há que ter pena: daqui a uns 40 000 anos passará relativamente perto da estrela Gliese 445.

space-travel-67757_640E sabes uma coisa? Lá dentro, a nave leva um disco de ouro — nunca se sabe se alguma inteligência extraterrestre não encontrará a maquineta… Se encontrar, poderá ouvir alguma música e ler informações sobre o nosso pequeno mundo. Para eles, seremos nós os extraterrestres, estranhos bichos longínquos que enviaram uma máquina para percorrer o universo, com um disco cheio de sons incompreensíveis. Com toda a probabilidade, será a maior descoberta do planeta deles. E, digo-te de coração pesado, talvez a humanidade já nem exista. Mas num canto qualquer do universo haverá um extraterrestre a ouvir Beethoven.

Só mais um pormenor, para veres como o universo é grande para caraças. Vimos como as estrelas mais próximas estão muito longe. E, no entanto, à escala da galáxia, Proxima Centauri é já aqui. Está na vizinhança.

A nossa galáxia é mais ou menos assim:

OUR GALAXY

Procura o Sol. Está dentro dum pequeno círculo, um pouco abaixo do meio da imagem. Pois nesse círculo também vais encontrar as estrelas mais próximas. O Sol e essas estrelas da vizinhança são um pequeno pontinho num dos braços secundários deste monstro, monstro esse que é apenas uma entre muitas galáxias do Universo. E há quem ache que a China fica muito longe…

Uma selfie planetária

Tens um mundo inteiro à tua espera e é desse mundo que te quero falar, para te apontar para um ou dois pormenores interessantes, para alguns segredos e maneiras de ver que talvez te despertem a curiosidade e a sede de beleza. Ora, essa beleza aparece-nos onde menos esperamos: vinda até das antenas de distantes robots.

Pois, repara nisto: a Voyager 1, a pequena nave que enviámos para percorrer o universo, fez uma malandrice no dia 14 de Fevereiro de 1990.

Curiosa, voltou a cabeça para trás e tirou uma fotografia ao nosso planeta, donde tinha partido anos antes.

Aqui está o resultado:

Pale_Blue_Dot

A Terra é o pequeníssimo ponto azul no meio do raio mais claro, à direita da fotografia.

Esta fotografia, chamada Pale Blue Dot, veio a ser o título dum livro de Carl Sagan, o autor que, há muitos anos, primeiro me fez sentir o espanto das estrelas, quando li Cosmos, um livro que te aconselho (está ali na estante, se quiseres).

Aliás, foi ele que pediu à NASA para enviar a instrução à Voyager para que se virasse e tirasse a foto.

Nesse pequeno ponto branco estávamos todos nós: estavam os cientistas que, num laboratório americano, enviam instruções à distância para tirar uma selfie ao planeta. Estava eu, com os meus nove anos, a brincar à beira-mar. Estava a tua mãe a ir para a escola sossegada. Estavam os pais dos teus amigos. Estavam também todas as nossas cidades, todas as florestas, todas as histórias, todos os livros, todos os amores, todos os oceanos, todos os males, toda a beleza que conhecemos, todo este planeta — que é apenas um ponto frágil no meio do universo. Nesse ponto azul estamos nós e mesmo essa pequena máquina que lançámos perdida pelo universo mal começou a explorar o que existe lá em cima.

O futuro nas estrelas?

Guardei um outro segredo das estrelas para o fim.

Vai lá fora e olha para as estrelas. Aquilo que vemos no céu é o passado distante. Algumas das estrelas que vemos podem já não existir há milhões de anos. Isto tudo porque estão tão longe que a luz demora milhões de anos a cá chegar.

Este é outro dos truques que os cientistas usam para perceber a história do universo: os bons telescópios não nos ajudam apenas a ver mais longe. Também nos ajudam a ver mais para trás. Assim, a história do universo está a dar, em directo, lá em cima. O telescópio Hubble é uma janela para o passado do universo.

Pensa também assim. Daqui a muitos milhões de anos, alguém que esteja noutro ponto do universo (nunca se sabe) talvez olhe para aqui e veja uma pequena pinta no céu: o nosso Sol. A nossa estrela, tal como existe neste momento. Já nós não estaremos cá e ainda a luz que nos banha hoje mesmo andará a percorrer o universo, bem mais depressa que a nossa Voyager 1.

Sem essas luzes que vemos no céu, não estaríamos aqui: foi preciso que surgissem estrelas, há milhares de milhões de anos, e que estas estrelas explodissem, para criar esta outra geração de estrelas, como o sol, rodeadas dos destroços das estrelas mais antigas. A nossa Terra é feita destes destroços, dessa poeira. Sim: tu e eu e todos nós somos feitos de poeira de estrelas.

Há muitas outras perguntas: quando surgiu o universo? Podia ser doutra maneira? Donde vieram as leis da física? O que vai acontecer no futuro? E os átomos, são assim porquê? Os cientistas têm algumas respostas, procuram outras. Nem todas estarão correctas. Vão tentando.

Agora que isto me deixa um arrepio na pele, não há dúvida. Sinto essa sensação de espanto muito concreta, uma vertigem no estômago. Olhar para as estrelas e pensar que estamos a olhar para o passado distante e para os pequenos fornos onde se cria a mesma matéria de que somos feitos… Ficamos de boa aberta.


Agora, tenho de te confessar: a tua mãe e eu, quando nasceste, não nos pusemos a pensar naquilo de que és feito. Sim, tu és feito desse material que já esteve no coração das estrelas. Mas ainda mais espantoso do que isso és tu a brincar, a rir, a perguntar de que são feitas as estrelas e outras perguntas difíceis. Nós somos feitos de pó das estrelas, mas o que importa quando olho para ti é o resultado de toda esta lotaria cósmica: estarmos aqui juntos, a viver.

Como é que dessa poeira sem vida surgiram seres tão complexos como nós, com consciência de aqui estarmos, com curiosidade para olhar para as estrelas, com toda a intrincada engenharia dos nossos corpos, das nossas mentes e da nossa imaginação?

No próximo capítulo, vou levar-te a viajar até ao início da vida, quando a Terra ainda era um inferno de vulcões, aí há uns bons 3500 milhões de anos. Verás como um dos teus avós mais antigos era um peixe — e como até os piolhos são teus primos. E não vamos acabar sem perceber quem apareceu primeiro: o ovo ou a galinha (digo já: foi o ovo).

Obrigado ao meu irmão Diogo pelas sugestões.

E a Carl Sagan pela inspiração do título.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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