por NUNO LOPES
Em 1975, George Steiner, autor francês e figura incontornável da crítica literária, da linguística e da filosofia da segunda metade do século XX, publicava After Babel: Aspects of Language and Translation, com revisões em edições posteriores (1992 e 1998). Esta autêntica “pedra no charco” (ou no deserto) da teoria da tradução e da linguagem é ainda hoje uma das obras de leitura essencial para qualquer tradutor e para quem tem interesse ou curiosidade por línguas, linguística ou pelos subdomínios linguísticos da filosofia.
O ensaio de Steiner tem um fio condutor relativamente simples: o entendimento da tradução como qualquer acto de comunicação significante entre emissor e receptor. Por outras palavras, segundo Steiner, há tradução sempre que há comunicação efectiva e não apenas quando há transposição de texto de uma língua para outra. A ideia é desenvolvida e proposta como basilar para que se possa considerar estabelecer uma teoria da tradução.
Um dos aspectos abordados por Steiner – na minha opinião um dos mais interessantes e centrais – foi a importância da “mentira” para a linguagem humana. A palavra mentira tem uma carga imediatamente negativa, mas aqui deve ser entendida no sentido mais lato: ilusão ou invenção. O autor dá-lhe um nome específico: “alternity”. Trata-se do poder da invenção, a capacidade para criar conceitos alternativos à realidade ou, numa perspectiva evolutiva, a “camuflagem pela linguagem”. Na opinião do autor, esta é uma das funções vitais da mente humana. A infra-estrutura do raciocínio é de Nietzsche e é exposta sobretudo em der Wille zur Macht: a verdade é limitadora para o ser humano na medida em que apenas o faz agir normalmente, ou seja, conforme previsível; já a mentira, a fantasia produto da imaginação, arma o ser humano com o potencial de se tornar – e de fazer do mundo – aquilo que idealiza na sua mente. Em última análise, é por isto que somos mais do que meros animais presos na engrenagem fria da sobrevivência. Steiner pega nesta ideia para examinar o poder inventivo da linguagem, poder esse que presenteia a espécie humana com aquilo a que o autor designa por “ilusão da liberdade”:
Language is the main instrument of man’s refusal to accept the world as it is. (…) We speak, we dream ourselves free from the organic trap.
Em termos filosóficos, esta questão é tremendamente importante para o estudo da linguagem e da tradução e, creio que não será excessivo dizê-lo, o mesmo é verdade para várias disciplinas das humanidades e das ciências. O motor criativo primordial chamado linguagem permitiu-nos, como espécie, conceber existências nas quais não somos meros figurantes numa história pré-determinada, mas sim actores que improvisam constantemente, abençoados com o livre-arbítrio e com o engenho e curiosidade naturais.
O problema de Babel – a disseminação das línguas diferentes e mutuamente incompreensíveis – é apontado por Steiner como um dos maiores catalisadores de evolução sociocultural, material e civilizacional. Babel não foi um castigo para o Homem como se pretendia na resposta bíblica à questão das línguas. Foi antes uma bênção determinante para a evolução da espécie humana: se a linguagem é um universo de concepção e criação, então cada língua, com o seu molde metafísico e as suas idiossincrasias, é uma galáxia de possibilidades.
Ainda que Georg Steiner tenha de facto nascido em França (1929), identificá-lo como francês é redutor. Era filho de judeus oriundos de Viena, de onde fugiram devido às perseguições. Durante a guerra, a família voltou a fugir, desta feita para os E.U.A., tinha GS apenas 11 anos. Foi educado num contexto multilingue, dominando desde cedo com igual proficiência o alemão, o francês e o inglês (hoje em dia mais algumas). Já na idade adulta acabaria por se fixar em Inglaterra, embora viajando pelo mundo inteiro, tanto mais que foi Professor nas Universidades de Genebra, de Harvard, Oxford e Cambridge. Tem dupla nacionalidade – francesa e americana – mas é um verdadeiro cidadão do mundo.
Sem dúvida, Maria. Num primeiro esboço deste texto inclui uma introdução que abordava a ascendência judaica do autor e a sua posição crítica em relação ao sionismo, dada a actualidade do tema. Mais tarde acabei por retirar esse parágrafo para não me dispersar nas temáticas. Agradeço o comentário e concordo que é um um autor universal no verdadeiro sentido do termo.