Ontem apresentei o livro A Baleia que Engoliu Um Espanhol na Atouguia da Baleia, terra dos meus avós e cenário de algumas das histórias que engendrei. É um texto muito pessoal e que fará mais sentido para quem lá esteve, mas deixo-o aqui mesmo assim.
Devo agradecer em primeiro lugar ao presidente da Junta, Afonso Clara, que me convidou para aqui vir falar a esta que é também, de forma muito particular, a minha terra. Já explico que isto quer dizer. Depois, à Sociedade Filarmónica 1.º de Dezembro de 1902, que me recebe neste espaço onde me lembro de vir algumas vezes com o meu avô Manel assistir a conferências e espectáculos. Agradeço ainda à Ângela Malheiros, que pela segunda vez em menos de um mês vem falar um pouco sobre estes livros.
Bem, disse a minha terra. Será isto um abuso? Afinal, nasci e cresci em Peniche e, depois, fui estudar para Lisboa, donde ainda não saí. Mas a verdade é que, durante a minha infância, as casas dos meus avós eram na Atouguia.
Era cá que vivia a minha avó Leonor e o meu avô Faustino, ali no Bairro do Capitão. Lembro-me do sótão onde estavam os quartos das crianças — que já tinham saído de casa há muito tempo —, recantos escondidos atrás de móveis, livros nas estantes… E lembro-me das refeições com os meus irmãos e primos, belos exemplos de caos feliz, aos gritos e aos pulos, enquanto os meus pais, os meus avós e os meus tios conversavam à mesa.
Lá atrás, no quintal, tantas horas brinquei — e naquela sala via televisão e, claro, lia muito. Foi na rua à frente dessa casa que os pais e tios me tentaram ensinar a andar de bicicleta. Lembro-me duma noite em que um dos meus tios — já não me lembro qual — largou o selim e dei umas belas pedaladas. Não caí — durante alguns segundos!
A Atouguia era também a terra da minha avó Gisela e do meu avô Manel. Foi lá que comecei a ler, devorando num certo Verão a colecção inteira de Os Cinco. Enquanto os meus avós atendiam quem passava na papelaria que havia numa das divisões da casa, quantas tardes não passei a ler na sala, tomando emprestadas as bandas desenhadas, os jornais e os livros da papelaria. Sentia-me, então, parte desta terra como nunca, tal como continuei a sentir-me quando ali passei largas temporadas depois do dia em que tudo mudou naquela casa.
Também me lembro muito bem da antiga loja do meu avô, no Largo de São Leonardo, loja que tem para mim o sabor de histórias muito antigas, da velha infância quase perdida… Ali mesmo ao lado, a Igreja de São Leonardo, onde está um osso gigante que acicatava a minha mente infantil, a imaginar monstros marinhos e histórias de encantar ou de assustar.
Foi entre a loja e a igreja que tive um pequeno acidente, num dia em que o meu avô me tentava, também ele, ensinar a andar de biciclita. Pelos vistos, toda a família estava muito empenhada em que soubesse andar naquilo. Pois — sem qualquer culpa do meu avô! — caí mesmo à frente da Igreja de São Leonardo, o que me levou a desistir daquela loucura de duas rodas durante uns bons tempos.
Ainda hoje oiço as histórias que o meu avô conta daquela loja, que assim foi ganhando o papel de cenário de todo o século XX que não vivi, entre um gato atropelado que ainda hoje comove o meu avô, agentes da PIDE a rondar, os telefonemas que precisavam de marcação — entre muitas outras histórias da terra e arredores, como a sala da televisão que só não caiu porque houve quem andasse a pôr estacas cá em baixo ou o galego que, durante a guerra de Espanha, não podia abrir a boca para não ser apanhado. O meu avô conta tudo isso muito melhor do que eu, claro está!
Quando, em 2016, depois de publicar um primeiro livro sobre a língua portuguesa, comecei a escrever uma espécie de romance contar a história da língua de maneira um pouco diferente do habitual — falo d’A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa — acabei por incluir uma das histórias que o meu avô me contou: foi assim que pus Fernando Pessoa (ou alguém por ele) a chegar à Quinta Nova dos Salgados, onde encontrava umas crianças — entre elas o meu avô — e o meu bisavô Mário, que nunca conheci. E, lá pelo meio, um rapaz mudo — rapaz que afinal não era mudo, era galego. A história está no livro, quase no fim.
Todas essas histórias acabaram por fazer parte do meu imaginário, misturadas e às vezes quase irreconhecíveis, diminuídas como eram pelas falhas de memória e aumentadas pela vontade de sonhar. Juntavam-se também, sem querer, às conversas com toda a minha família, com os meus amigos, com as pessoas que entravam e saíam das nossas vidas — e ainda pelo que lia nos livros, nas bandas desenhadas, nos jornais… Na nossa cabeça, as histórias e as memórias misturam-se sem pudor — e incluem as brincadeiras no largo da mercearia da minha avó, em Peniche, as aventuras que vivia com os meus três irmãos a andar de bicicleta na rua dos meus pais — sim, por fim aprendi a andar no gingarelho! — e tudo o mais que já nem sei identificar.
Pois bem, ali no início de 2017, logo depois da publicação desse livro onde aparecia já uma das histórias que ouvira do meu avô, António José Correia, que era então o presidente da Câmara de Peniche, telefonou-me com um desafio. E que tal contar a história destas nossas terras da mesma maneira que tinha contado a história da língua? Deu-me até um ponto de partida: Lucius Arvenius Rusticus, um romano cuja olaria está a ser estudada por uma equipa de arqueólogos no Morraçal da Ajuda. A minha imaginação disparou logo que ouvi falar em ânforas romanas…
A partir daí, durante alguns meses, pus-me a escrever estas histórias. Não, não são apenas as histórias familiares, misturadas com a História real desenterrada pacientemente por arqueólogos e historiadores. Este livro que aqui apresento tem muito de invenção — e tem muito de lenda e brincadeira. Por isso mesmo, não posso deixar de agradecer também a Mariano Calado, com o seu livro Peniche na História e na Lenda, que desde pequeno me acompanhou e alimentou a imaginação.
O livro chamava-se O Tesouro que Escondemos dos Espanhóis, mas a editora torceu um pouco o nariz — talvez não quisesse irritar os espanhóis, não sei. Esse primeiro título partiu dum verso da música dos Azeitonas chamada «Nos desenhos animados (nunca acaba mal)». Essa canção descreve também um pouco o imaginário infantil que usei neste livro. Para mudar de título, lembrei-me de ir buscar essa baleia que está na Igreja de São Leonardo e que imaginei com um espanhol na barriga, por motivos que o livro explica.
O lançamento do livro foi na Fnac do Vasco da Gama e quem o apresentou foi o Fernando Alvim e D. António, Prior do Crato. Como consegui tal personagem histórica? Foi um difícil contacto de António José Correia — que convidou o antigo rei, mas, infelizmente, não pôde ir à apresentação. Está aqui hoje, para compensar. Já o rei, hoje, não quis vir.
O livro anda por aí há algum tempo. Entretanto, já escrevi outros, mas de vez em quando ainda me lembro destas histórias e uma vez por outra encontro quem tenha lido A Baleia que Engoliu Um Espanhol. Descobri mesmo um leitor que soube pelo livro que Peniche já foi uma ilha. Estas histórias já serviram para alguma coisa.
O tal tesouro não está no título, mas continuou a ser o centro das aventuras — aventuras que vão desde o Império Romano até uma gruta nas Cesaredas, com navegadores, amores delirantes, nazis em fuga, mapas do tesouro — e, claro está, uma brigada da GNR.
Ah, mas tudo tinha mesmo de começar com uma queda de bicicleta à frente da Igreja de São Leonardo. Já não era eu que caía, mas o protagonista da história. Sobre o que se passou a seguir não vou dizer muito: deixo à imaginação de quem ler. Prometo, no entanto, que irão encontrar muitos dos lugares que todos conhecemos neste concelho. O livro vai muito longe, no entanto: chega à Turquia, note-se. Espero que seja uma leitura divertida — e que, depois, cada um continue com a sua imaginação.
Os livros não foram feitos para falarmos deles. Foram feitos para serem lidos. Por isso, convido-vos para lerem esta Baleia. No fundo, este livro pega na História que fui aprendendo e nas histórias que li e ouvi e refaz tudo num prato que tem como objectivo dar prazer ao leitor. Aqui e ali, acrescentei um ponto — às vezes, acrescentei muitos pontos. Cada geração ouve as histórias de maneira um pouco diferente e cabe-nos a todos continuar a contá-las, a moldá-las, a imaginá-las — se não servirem para mais nada, servem para as contarmos uns aos outros, em família, nesses momentos de pura felicidade. O livro é uma homenagem a todos os avós e a todos os pais — a começar pelos meus pais —, que alimentam os imaginários das suas crianças a conversar, a contar histórias, a viajar. Espero fazer o mesmo com os meus dois filhos, o Simão e o Matias, que estão aqui mesmo à minha frente.
E, por fim, por ser essa homenagem aos contadores de histórias, o livro é dedicado aos meus avós, aos meus quatro avós da Atouguia da Baleia — e é assim tão bom e tão importante para mim apresentá-lo aqui, nesta minha terra.
Obrigado a todos!
[A imagem que ilustra o texto é de Carlos P. Gonçalves.]