Parece que os gregos chamavam «bárbaros» aos pobres coitados que não sabiam grego. E, claro, andavam convencidos que os tais bárbaros eram gente estranha e um pouco tola. É fácil de explicar: se falavam outra língua, não deviam perceber grande coisa do mundo — pois se o mundo é tão claro em grego!
Ora, a verdade é que essa ilusão do barbarismo dos outros persiste mesmo numa época como a nossa, em que muitos já aprenderam outras línguas. É uma ilusão mais vaga, claro está: mas nota-se quando dizemos, por exemplo, que esta ou aquela palavra não tem tradução ou que há um ou outro sentimento que é exclusivo dos portugueses. Sim, estou a falar do mito da saudade, de que já aqui falei — um mito que ainda ontem um amigo facebookiano (António Chagas Dias) chamou de «ilusão de Babel». Sim, para muitas pessoas, as línguas diferentes separam-nos de forma irremediável.
Esta ilusão vai beber a uma constatação: o mundo é tão claro e directo na nossa língua e tão difícil de descrever na língua dos outros… Logo, concluímos nós sem pensar muito no caso, as outras línguas não conseguem transmitir o nosso mundo, o mundo visto pelos olhos dos Portugueses. Daí prosseguimos, felizes: há uma forma muito própria de ver e sentir o mundo que está inscrita da nossa língua. Com uma pirueta desaconselhada a cardíacos, concluímos: há sentimentos que são apenas e só dos Portugueses! Ah, valentes!
Isto, lamento dizer-vos, é uma ilusão. Uma ilusão subtil, mas uma ilusão — e acreditem que encontramos este mito nas mentes mais inteligentes e nos escritos mais profundos. Pois quantos tratados não se fizerem à volta duma palavra como «saudade»?
Vamos pôr ordem nas nossas ideias: sim, em certas frases muito raras, a palavra «saudade» é difícil de traduzir. Mas não é impossível: os tradutores pegam na frase em que a palavra aparece e traduzem a frase. Têm de escolher a melhor forma — e escolhem. Não é muito diferente do que acontece em tantos outros casos de palavras que não têm uma correspondência directa na outra língua. E a verdade é que até encontramos algumas correspondências bastante directas (como «dor», em romeno).
Como há muito tempo disse por aqui, ainda está para vir o dia em que um livro traduzido aparece com um espaço em branco e uma nota do tradutor a dizer «esta palavra não tem tradução e o caro leitor nunca irá compreendê-la pois não é português».
Isto porque qualquer que seja o sentimento que a palavra está a expressar naquela frase, não será certamente exclusivo deste canto à beira-mar. Não, os estrangeiros não têm um qualquer bloqueio físico a impedi-los de sentir esse sentimento tão humano que é a saudade.
Vá, temos de admitir: não existem sentimentos exclusivamente portugueses. O que existe, isso sim, são atalhos um pouco mais curtos para chegar ao mesmo sítio. Ou como quem diz, palavras que mais directamente nos ligam a esta ou àquela emoção.
Porque os outros não são bárbaros. Apenas falam uma língua diferente.