Cada um de nós tem as suas manias, a sua perspectiva e uma ou outra coisa de que percebe mais do que o habitual. Já andei a viajar com quem conhecia todas as rochas e lá me ia descrevendo o que via debaixo dos pés. Também conheço quem me explique as várias técnicas de fabrico de cerâmica nas regiões por onde passamos. Outros conhecerão os pássaros, as plantas, a roupa, e por aí fora.
Já cá por casa, como é fácil adivinhar lendo este blogue, tenho o ouvido bem atento às línguas. Ora, a verdade é que muitos portugueses têm, pelo contrário, o ouvido um pouco mais fechado do que o normal para as diferenças linguísticas porque vivemos num país relativamente simples neste ponto: é difícil para nós perceber que, num só país, se possam esconder várias línguas.
Também é difícil estarmos atentos às implicações políticas do uso de cada língua, porque em Portugal tudo é simples: o português é a língua do Estado e a língua de quase todos. Ponto final.
Ora, a semana passada, fiz uma viagem até Barcelona. Fui de carro. Não porque sou masoquista, mas agora não me apetece explicar as razões. Fica para depois. Obviamente, lá fui reparando nalguns pormenores curiosos, que já tinha encontrado noutras viagens, mas que nunca me canso de apontar. Ficam aqui, para vos dar a conhecer um pouco melhor a complexidade da situação sócio-linguística da Catalunha. O que isto significa em termos políticos e sociais ficará para outra altura.
Os nomes das terras
Antes ainda de chegar à Catalunha, noto as placas a indicar «Lleida». Há muitos anos, quando atravessei pela primeira vez a nossa península, ainda me lembro de ver placas a dizer «Lérida». Hoje em dia, «Lérida» já não se vê.
O único nome oficial é mesmo «Lleida», em catalão, e isto mesmo quando estamos a ler textos em espanhol. Porquê? Porque, na Catalunha, a toponímia oficial é monolingue: só em catalão. O resto de Espanha, neste ponto em particular, lá decidiu ir atrás e usa os nomes catalães em certos contextos onde talvez não fosse normal esperar tal cedência.
Alguns espanhóis dizem que isto é ser mais papista do que o papa: afinal, ninguém diz «London» em espanhol, por que razão é preciso dizer «Lleida», se a palavra espanhola é «Lérida»? Repare-se que não estamos a falar do nome da terra nas placas dentro da Catalunha. Estamos a falar do nome da terra nas placas do resto de Espanha e nos documentos em espanhol. Em catalão, claro que o nome é «Lleida».
Estamos muito longe dos tempos em que ninguém, fora da Catalunha, sabia que «Lérida» não era assim chamada pelos habitantes da própria cidade.
Só para acabar: também pela Galiza, que optou pela toponímia apenas em galego, o nome da velhinha La Coruña é agora só A Coruña. Parece que só nós, portugueses, insistimos em usar o nome castelhano… Já no País Basco e em Valência, a solução foi dar dois nomes às cidades. Assim, o nome oficial de San Sebastián é «Donostia-San Sebastián» e o nome oficial de Elche é «Elx-Elche».
As placas da estrada
Logo quando passamos a fronteira entre Aragão e a Catalunha (os independentistas diriam, sem pestanejar «fronteira entre Espanha e a Catalunha») vemos uma mudança nas placas da estrada. Onde antes estava apenas «Red de Carreteras del Estado», temos agora, por cima, a versão catalã: «Xarxa de Carreteres de l’Estat». A versão em espanhol mantém-se porque são estrados da tal Estado (ou «Estat»). Nas estradas mantidas pela Generalitat (governo catalão) ou pelos municípios, o espanhol não é fácil de encontrar. E, sim, para lá de Aragão, as «salidas» agora são «sortides»…
Os nomes das terras também ganham um sabor bem pouco castelhano: temos Mollerussa, Montserrat, Sant Cugat e por aí fora…
Publicidade e conversas de rua
Em Barcelona, cada vez mais se vê catalão escrito e cada vez menos espanhol. Mesmo a publicidade começa a ser muito em catalão e menos em espanhol. Digo «cada vez mais» sem deixar de referir que a sensação é pessoal, de quem vai à cidade de vez em quando.
Já nas ruas, ouve-se uma mistura das duas línguas que, para muitos ouvidos portugueses, não deixa de soar ao mesmo (mas os ouvidos portugueses, muitas vezes, nem o galego conseguem distinguir…).
Note aquele que não está tão habituado a essa língua como os catalães dizem os jj à portuguesa, como usam verbos como «parlar» e «manjar», como dizem «bon dia», como têm vogais bem mais fechadas que o castelhano. Com tempo, habitua-se. Mas tem de perceber que, numa mesma loja de Barcelona, vai ouvir as duas línguas, se for preciso entre as mesmas pessoas.
Estava eu no Pans & Company (que, diga-se, é de origem catalã e lia-se, originalmente, à catalã, com o ny a fazer de nh) e ouvi a mesma rapariga a atender um rapaz em espanhol, um senhor mais velho em catalão, para logo voltar ao espanhol no cliente seguinte. Tudo sem pestanejar.
Falar catalão com estrangeiros?
Tente o português falar um pouco de catalão com catalães e terá uma surpresa: por alguma razão, muitos passam rapidamente para o espanhol mesmo perante estrangeiros que até gostariam de ouvir essa bela língua um pouco escondida. Porquê? Não sei. Talvez seja do hábito. É tão pouco normal que um estrangeiro saiba o que é o catalão (quanto mais dizer umas frases na língua), que o catalão não se sente bem a falar a sua língua com quem não é de lá. Para estrangeiros, a língua certa é o espanhol, diz o inconsciente catalão.
Podem não falar muito catalão com estrangeiros, mas não deixam de sorrir e gostar de algumas frases: um «bon dia», um «benvinguts», uma «bona nit», um «parlo una mica de català». Ou até: «t’estimo molt» (mas aqui convém usar apenas com quem mereça). Quanto a dizer o nome, a frase é estranhíssima: «Em dic Marco.» Sim, chamo-me Marco. Ou, mais literalmente, «digo-me Marco».
Cinema
E o cinema? Bem, há filmes em catalão (no original ou traduzidos), mas a maioria é lançada em espanhol, o que se compreende. Mas não deixa de ser curioso: passei por um cinema e todas as indicações (preços, condições, etc.) estavam em catalão, bem como a publicidade à empresa dona das salas. Já os filmes estavam em espanhol (incluindo cartazes).
Passear pela cidade
Andei a passear pela cidade durante as Festas de Santa Eulália, a grande festa de Inverno de Barcelona. Ouvia-se muito catalão na rua. Ouvi eu algo assim (alguém a gritar): «tancat» (o quê? o carrer). Em Madrid, teria ouvido «cerrada» (o quê? a calle).
E livros?
Num supermercado, havia a indicação na prateleira dos livros em catalão: «Llibres en català». Os livros em espanhol não tinham indicação nenhuma. Neste mundo, o normal ainda é o espanhol. Os livros em catalão têm a sua área específica…
Mas, não se enganem: não deixa de ser, das línguas minoritárias deste mundo, a que está mais bem protegida na área da literatura. Talvez por muitas editoras terem a sede em Barcelona, há muita edição em catalão. Muito mais do que em galego e basco, por exemplo. E há ainda esta coisa extraordinária: muitas traduções para catalão. Ainda há uns anos encontrei na Fnac de Lisboa Os Maias traduzidos para catalão. Estranhíssimo achado, há que dizer. Alguém que quis encomendar a versão em espanhol e se enganou…
Jornais
Dos jornais, já falei há poucos dias. Há jornais em espanhol (La Vanguardia, por exemplo), outros em catalão (El Punt Avui, por exemplo) e o El Periódico, quem tem duas edições: uma em catalão, outra em espanhol.
Estacionamentos e restaurantes
Já o estacionamento está (ou não) «lliure». Ou seja, «libre». Note-se que «lliure» lê-se, mais ou menos, «lhiúra». Sim, o «e» final lê-se como um a fechado. «Clàssiques» (que vi num menu dum restaurante para descrever sandes) escreve-se assim mas lê-se «clássicas». Praticamente igual à palavra portuguesa, com vogais fechadas e tudo. Só o s final é que é menos «ch» que o nosso. O menu é curioso: o «jamón» é «pernil», o «queso» é «formatge», o «atún» é «tonyina».
E podia continuar por aí fora. Podia ainda relacionar tudo isto com as estelades (bandeiras independentistas) que se vêem por toda a cidade, podia falar dos graffittis catalanistas dentro da cidade e espanholistas nos subúrbios, das «fruiteries», dos autocolantes com o «CAT» nalgumas matrículas (menos do que há uns anos — isto vai de manias, claro), e ainda do teatro que é quase só em catalão (não é como o cinema), dos tribunais que são quase só em espanhol, da polícia catalã que tem o bonito nome «mossos d’esquadra» e muito mais. Podia falar da literatura, com grandes escritores catalães que escrevem ou escreviam em espanhol (Juan Marsé ou Manuel Vásquez Montalbán) e lá têm umas frases em catalão pelo meio, outros que escrevem romances em espanhol e teatro em catalão (Eduardo Mendonza), outros que escrevem só em catalão (deixo-vos só o nome da escritora que escreveu La plaça del diamant, grande obra catalã do século XX: Mercè Rodoreda). Só na literatura, temos imenso para explorar neste mundo das línguas…
É uma situação muito, mas mesmo muito complexa, mas que todos os que lá vivem tentam navegar o melhor que podem e sabem. Há muitos anos, no início deste século, andei por lá mais dias, a conversar com muito mais pessoas, incluindo:
- um padre que se orgulhava de ter protegido o catalão na sua paróquia quando a situação política era muito diferente e me dizia, baixinho, que tinha muita inveja dos portugueses por sermos independentes;
- um senhor chamado Manuel (de Barthelona, pois então) que se orgulhava de ser espanhol e que sabia falar catalão, sem grande entusiasmo, mas não o conseguia nem queria escrever (e era amigo de Aznar e do rei, dizia-me ele);
- e ainda um cirurgião e a sua mulher, catalanistas dos quatro costados, espantadíssimos com o meu interesse pela sua língua.
Do jantar com esse casal barcelonês, num pequeno apartamento no Eixample, lembro-me bem da filha, com uns cinco anos, a mostrar-me como sabia músicas de Natal e dos pais, orgulhosos, a olhar para a filha a cantar na sua língua. Lembro-me dessa língua estranha que me encantava por ser tão desconhecida no meu país. Não me recordo bem de qual era a canção, mas talvez a música fosse esta (lembro-me de ouvir o «ha nascut»:
Estigui content,
Jesús ha nascut ;
Per dur-nos la joia
Al món ha vingut.
A menina quase não sabia espanhol, que iria começar a aprender na escola, dali a uns meses. Aqueles pais e aquela menina estavam a tentar viver a sua língua de forma tão normal como nós, portugueses, vivemos a nossa.
O tal senhor Manuel, bem espanhol, também queria viver na sua língua (o espanhol) da melhor forma possível e dizia-se irritado por ver o filho a aprender quase tudo em catalão.
São situações complicadas, que não se resolvem com opiniões brutalistas, é-assim-porque-tem-de-ser. Para já, enfim, digo-vos só: quando forem a Barcelona, abram os ouvidos. Reparem mais no que vos rodeia. Sim, é uma cidade pouco normal no que toca às línguas. E é tão interessante.
É também, como todos sabemos, um mimo de cidade… Mas isso são outras histórias.
Fins aviat, Barcelona!
…E quando vierem à Galiza, falem galego, não permitam que se repitam situações como esta:
-Buenos dias, aonde tenemos que ir para encontrarmos el museu X?
-Bom dia. Para chegarem ao museu continuem até a praça e depois virem à esquerda.
-O senhor é português?
-Não, sou…
-Então é brasileiro? Angolano?
-Sou daqui, sou galego. Portanto, sou lusófono.
-Ah, usted es espanhol…! Muntchas grácias.
Ah, ah! Muito bom! 🙂 Hei-de passar este comentário, se não se importar, para um artigo principal do blogue…
http://4.bp.blogspot.com/-xC6BujE8s9M/Uc351_y47iI/AAAAAAAADAQ/HJ65dgcXe48/s1414/iberia.JPG
O teu fascínio por esta questão não acaba.. Quando fui a Barcelona fiquei com um sorriso parvo na cara quando uma senhora que me vendeu pão me disse um “bona nit” ao despedir-se. Senti-me bem vinda num país que não é o meu e isso, só por si, vale tudo!
É verdade: não acaba mesmo. Cada vez que lá vou, tenho uma recaída.
Bem… Bona nit! 🙂
Penso que todos na Espanha têm a sensaçom de que os estrangeiros, se sabem ou entendem alguã língua estrangeira, esse é o castelão e nom o catalám.