Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Que castelo é aquele no horizonte de Lisboa?

Na viagem de hoje, vou de Chelas até Cambridge, passando por um certo castelo que paira no horizonte de Lisboa.


Todos os dias lá tenho o calvário conhecido de tanta gente: meter-me no trânsito para ir pôr o filho à escola. Ao final da tarde, a mesma coisa. Lá pelo meio tenho a famosíssima e pesadíssima Rotunda do Relógio.

Pois, agora, descobri um truque: o Google Maps sabe o trânsito que está a cada momento e adapta-me o percurso para não ferver a paciência no meio dos carros. Resulta? Quase nunca: mas pelo menos tenho descoberto ruas e vistas de Lisboa que não conhecia.

Por exemplo, no outro dia, quando já tinha deixado o Simão na escola, o Google Maps, em vez de me enfiar na tal magnífica rotunda, levou-me para Chelas. Pois a certa altura, ali pelos altos do Parque da Bela Vista, deparo-me, lá bem ao fundo, com um castelo a pairar nas nuvens.

Abri a boca e olhei com mais atenção: aquilo era mesmo um castelo! Mas qual castelo, perguntava-me eu. Em casa, olhei para o mapa e alinhei aquela rua com a Península de Setúbal. Com o dedo fiz uma recta e fui para a Palmela. Era isso: aquele só podia ser o Castelo de Palmela.

Talvez seja um caso raro, mas na verdade nunca tinha visto o Castelo de Palmela a partir de Lisboa — até ao dia em que o Google Maps me levou pelos misteriosos caminhos de Chelas.

Bem, tudo isto para dizer que, ao final da tarde, quando fui buscar o Simão, perguntei-lhe se não queria ver um castelo.

«Quer dizer que vamos por um caminho diferente?»

«Sim!»

«Então quero!» (O ódio à Rotunda do Relógio é um hábito que se adquire desde muito novo.)

E lá fomos — só que já era de noite e a única coisa que conseguimos ver foi umas pobres luzes a pairar ao fundo. Podia ser o famosíssimo Castelo de Palmela — ou uns prédios no Montijo.

«Onde está o castelo, pai?»

«Está ali!»

«Não vejo nada» — e fez cara de quem começa a duvidar da sanidade do pai.

Mudei de assunto enquanto passávamos por baixo duns prédios enormes que estão à volta dum supermercado cujo nome agora não posso revelar:

«Sabes como se chama este bairro?»

«Não…»

«Chelas!»

Ele riu-se. Parece que o nome é divertido para quem nunca o ouviu. E assim começámos a falar de bairros de Lisboa e de nomes de terras. O Simão anda a aprender a distinguir cidades de países. Ainda há poucos dias, em Ponte de Sor, despediu-se do avô dizendo que ia para Portugal — lá lhe dissemos que o Alto Alentejo continua firme no meio do nosso país e que, na verdade, íamos era para Lisboa…

Pois, naquele dia do castelo, enquanto explorávamos a fronteira entre Marvila e os Olivais, eu explicava-lhe:

«Ponte de Sor, Peniche e Lisboa são no mesmo país: Portugal. Mas tu conheces outros países… Por exemplo, a tua prima Lilah vive em Cambridge, uma cidade num país chamado Inglaterra.»

Ele disparou logo:

«O Dinis também!»

Fiquei assustado: que confusão era aquela? O Dinis é o primo mais velho, que, longe de viver em Inglaterra, vive no outro lado da nossa rua lisboeta.

«Sim, ele aprende inglês em Cambridge!» (Não consigo reproduzir a maneira como ele diz este nome…)

Percebi, então: o primo tem aulas de inglês na Cambridge School (acho que é assim)… Agora, tinha de explicar por que razão há escolas com nomes de cidades, ainda por cima inglesas.

Depois da explicação, parados no trânsito (o Google Maps não faz mesmo milagres), disse-lhe a sorrir:

«Daqui a uns anos, vais tu para Cambridge passar uns dias com a prima e também aprendes inglês.» Ele não disse nada, mas sorria, já contente por imaginar a aventura. Continuei: «Se passares lá uns 30 dias chegas cá a saber inglês melhor do que eu…»

Ele arregala os olhos:

«Trinta dias? Ó pai, não vamos exagerar!» 

Fiquei a rir-me com aquela saída. Parece banal, assim por escrito, não parece? E, no entanto, era uma frase de adulto saída da boca ainda incerta duma criança, com os «rr» ainda por dizer, mas com a entoação exacta para dar aquele exacto ar de impaciência com as parvoíces do pai. As consoantes ainda não saem todas bem, mas as entoações e o tom já começam a ir ao sítio.

O semáforo passou a verde, o trânsito entornou-se por mais uma rua e lá avançámos nós em direcção a casa. Cá por dentro, prometi a mim mesmo: ainda lhe hei-de mostrar o tal castelo que paira no céu de certas ruas de Lisboa — e continuámos a conversar, pelas avenidas fora.

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Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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