Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

A chuva não deslarga?

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Ah, incompetência? Parvoíce?

O jornal Observador pôs esta frase num título: «Chuva não deslarga, bom tempo só a partir de domingo.»

Em fóruns da internet (ah, devia escrever fora, eu sei, eu sei) — lá veio muita gente rasgar as vestes. Não se faz!

Não se faz!

Ou porque a palavra não existe ou porque não é adequada.

Sim, não é adequada… normalmente.

Mas, neste caso, o jornalista usou uma palavra informal para denotar, de forma que me pareceu divertida, o desespero dos portugueses na rua que olham para o céu e só vêem chuva. A chuva não deslarga, de facto. O registo informal donde vem a palavra é adequado neste título em particular.

Estou a ver mal? Bem, se de facto o jornalista não tem noção dos registos da língua, o resto do texto estaria cheio de expressões informais. Mas não está. Parece-me perfeitamente legítimo achar que o jornalista usou a expressão informal de forma consciente.

Claro que para perceber isto é preciso fazer uma leitura com menos alarmes na cabeça, mais descontraída, se quiserem mais inteligente… (Desculpem lá se ofendo os ofendidos.)

Podia o jornalista ter usado «a chuva não pára»? Podia, mas não era a mesma coisa. Foi uma piscadela de olho ao leitor.

Ora, o leitor parece que não quer piscadelas de olho. Quer tudo ali muito direitinho, jornalistas aprumados e a língua muito, muito bem comportada. Nada de sair do risco!

Em resumo: como os obcecados dos erros não têm sentido de humor (acham que têm quando se riem dos outros, mas isso é outra coisa), acharam logo que o pobre jornalista não sabia que a palavra era informal. Caíram-lhe em cima à grande (posso usar «à grande», ou tenho de procurar alguma expressão mais formal?).

Os comentários irados diziam coisas como: a palavra não existe no dicionário (claro que existe!), «des» quer dizer negação (e por isso «deslarga» significa «agarra», o que é não perceber como funciona este prefixo em particular), entre outros impropérios (e lá veio alguém dizer que isto tinha sido invenção do acordo).

O jornal, perante a tempestade que não deslargava, alterou o título.

Será que o pessoal largou o osso? Não! Exigiu mais! Queria pedido formal de desculpas!

Meu Deus, isto é o quê?

É uma forma de ir matando a língua. Sim, o jornalista, para a próxima, vai limitar-se a usos inócuos da linguagem, vai arriscar menos, vai escrever pior! E os comentadores furiosos vão continuar na sua sanha à procura da próxima vítima, enquanto escrevem comentários que, de tão indignados com os «deslargas» desta vida, vão carregadinhos de gralhas. (Ironias, ironias…)

Suspiro e fico um pouco mais triste. Deve ser da chuva.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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16 comentários
  • ADENDA

    O meu amigo facebookiano Fernando Gomes ainda se deu ao trabalho de argumentar com quem furiosamente invectivava o «deslarga». Contra ele vi serem atirados estes dois argumentos: (1) que a palavra não existe e que qualquer pessoa que saiba o significado do prefixo «des» sabe isso mesmo; (2) que, se aceitarmos «deslargar» como palavra, temos de aceitar «çajkshdaslkj aslkjd asj» (ou algo do género) como português.

    Ora, aqui está o problema: primeiro, a palavra existe e até está nos dicionários. (Faz parte do registo informal, é verdade, mas isso não quer dizer que não exista ou não possa ser usada, em certos casos, em textos jornalísticos. Mas para perceber isto é preciso saber o que são registos e como funcionam, coisa que, normalmente, os defensores acérrimos das hipercorrecções não querem saber — e têm até alguma raiva de quem sabe.)

    Depois, «çajkshdaslkj aslkjd asj» não é português, não é usado por ninguém e não há por aqui quem defenda tais palavras. Pelo contrário, «deslargar» é usado (no registo informal), é um verbo que obedece às regras gramaticais do português (é verbo regular, vejam lá bem!) e, como tal, faz parte da língua.

    Quando ao «des», se achamos que um determinado prefixo só pode ter um significado, então não percebemos muito bem como funciona a nossa língua. O «des» tem pelo menos dois significados. Uma chatice.

    Não é para vos desinquietar, mas isto das línguas é mais complicado do que parece pensar quem debita por aí regras simplistas que mais não são do que hipercorrecções. Por exemplo, determinar que uma palavra não existe porque não pertence ao registo formal é um pouco estranho… Não precisamos de gostar ou de usar uma palavra para ela existir na nossa língua, que é bem maior do que cada um de nós.

    Infelizmente, como descrevo lá mais acima, estes salvadores da língua acabam por prejudicar, sem querer, o português. Tudo porque um prefixo não pode ter dois significados…

    ADENDA 2

    Pelos fóruns onde se discute esta questão, os que não querem «deslarga» por nada deste mundo vão mudando de argumentos: primeiro, a palavra não existe ou é um erro; depois, existe, mas não pode ser usado em textos jornalísticos sem aspas por ser do registo popular; agora, já me aparece algo como «não se vê nos dicionários mais antigos». Daqui pouco não se pode usar em textos sobre o tempo, é isso?

  • Deslargar, verbo intransitivo, = desandar, retroceder. Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Sociedade da Língua Portuguesa, tomo II, 1991

  • Pois a dita não deslarga não, título muito bem esgalhado! Bem coladinho ao tema! Bem sugestivo.
    Como pode ofender alguém?

  • Também a Infopédia regista “deslargar” como uma variante popular de largar…
    Quanto a fóruns, também não vejo qualquer problema. É um plural limpinho, perfeitamente “normal”!

    • Quanto a «deslargar», não consigo perceber como pode ofender alguém… Quanto a «fóruns», também não vejo nenhum problema. Mas há quem corrija para «fora»… Um abraço!

  • E por falar em chuva deslargada, vou sair do risco aqui.

    SINFONIA DA CHUVA
    Adoro chuvas minazes…

    O ribombar solene do trovão;
    O balé negro das nuvens sombrias;
    O fragor d’águas no tocar o chão;
    Cheiro de vida a preencher o ar.

    Adoro chuvas minazes…

    O baloiçar dos ramos ao fustigar do vento;
    A dança alegre dos respingos d’água;
    A gota fresca a borrifar meu rosto,
    Orvalho frio a me lavar com gosto.

    Adoro chuvas minazes…

    É chuva que berra,
    E água de serra,
    E cheiro de terra.

    Adoro chuvas minazes…

    Que lavam o cão,
    Que lavam o chão,
    Que me lavam a mão.

    Adoro chuvas minazes,
    E gotas audazes,
    E ventos fugazes.

    É Chuva chovendo no meu coração!

  • Normalmente essas palavras de origem dita popular têm origem no galego, português arcaico, alguém verificou? Fala-se contra o acordo, a mudança, e ao mesmo tempo rejeita-se aquilo que permaneceu imutável, próximo das origens, porque entretanto foi mudado e o que vale é o que é usado agora… Talvez uma contradição.

  • ” Foi uma piscadela de olho ao leitor”. E bem precisamos de piscadelas de olho, são abertas neste tempo cinzentão ( ena começo mal, já dá erro). E por falar em tempo, confirma-se o potencial climatérico das palavras, umas quentes, outras gélidas… “Deslarga”, uma só e a carga de água que desencadeou. É fantástico!

    • Foi uma carga de trabalhos, pois foi, este «deslarga»! Muito obrigado pelo comentário e espero que o fim-de-semana seja menos cinzentão…

  • O facto de não se ver nos dicionários mais antigos, e só nos mais recentes, pode querer dizer que é uma palavra que já foi mais recentemente consagrada pelo uso, não será ?… A tal evolução da Língua…

  • Há um casal de jovens ingleses que resolveu vir morar para Portugal e que, curiosamente, coloca tudo no Youtube.

    Tem sido mesmo muito interessante seguir as peripécias de quem nem sequer fala (ainda) a nossa língua mas mesmo assim resolveu vir morar numa aldeia remota do interior de Portugal Continental (perto de Mortágua), pois a cada dia colocam um vídeo resumindo as suas peripécias.

    Há muito que descobriram o prazer de comer pasteis de nata, mas recentemente, descobriram os nossos queques.

    Iniciou-se então o debate: De onde surgiu a palavra “queque”? Claro que a fonética me levou a deduzir que seria do inglês “cake”, mas eu queria obter uma “prova” disponível na internet e pesquisei por “queque etimologia”.

    O Google ajudou-me a encontrar o site “origemdapalavra.com.br” e achei a resposta esclarecedora e resolvi colocar no meu comentário no Youtube:
    http://origemdapalavra.com.br/site/pergunta/origem-de-queque/

    O que é que eu fui fazer…??? Usar uma página brasileira para explicar a língua portuguesa? Não…! Isso é “pecado”! As críticas logo caíram em cima de um português que ousou explicar a língua portuguesa sem se munir de “ferramentas portuguesas” para tal…

    Enfim, nós portugueses temos muitos tabus com a nossa própria língua, e a meu ver, maturidade precisa-se!

    Quem tiver curiosidade em seguir o canal do Jmayel e da Sacha, ou ler a minha troca de ‘argumentos’ sobre como se pode explicar a língua portuguesa usando páginas brasileiras (ou angolandas, ou moçambicanas, etc.), pode clicar aqui:

    • Tem toda a razão. O nosso medo do português do Brasil é espantoso. A única razão que encontro é esta: insegurança. Muita insegurança.

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