Hoje apetece-me falar do e-mail. Não é fácil, digo-vos já. É como falar do dentista: não deixa de ser útil, mas há sempre coisas mais interessantes para discutir.
E, no entanto, convém ir ao dentista — e convém pensar no e-mail.
É por e-mail que escrevemos, hoje, tanta e tanta coisa. É por e-mail que recebemos notícias, artigos, avisos das finanças e tudo o mais. Ao lado do Facebook, é dos canais por onde mais escrevemos em português.
E é por e-mail que trabalhamos, cada vez mais.
Assim, temos de conhecer nas armadilhas que a escrita de e-mails esconde.
Conto-vos uma história só para perceberem onde quero chegar.
Há uns anos, uma colega minha, gestora de projectos, recebeu ficheiros dum cliente de que já estava à espera há uns dias.
Respondeu algo do género: «Agradeço o envio dos ficheiros.» Isto, claro, com todas as fórmulas habituais antes e depois da frase.
O cliente mandou mensagem de imediato: «Outra vez? Mas eu acabei-me enviar!»
A minha colega ficou baralhada. Mas, depois de olharmos para aquilo uns segundos, lá percebemos todos o problema: a cliente tinha interpretado a mensagem como se estivéssemos a pedir os ficheiros: «agradeço que envie os ficheiros…»
Ainda por cima, se fosse essa a interpretação correcta, a frase pecaria por ser brusca e impertinente: «agradeço o envio dos ficheiros, senão ainda nos chateamos».
De nada valeu que a mensagem viesse num seguimento de mensagens em que se percebia que era a resposta ao envio dos tais ficheiros. Também não valeu o facto de ser mais habitual usar «agradecia que» nos pedidos. A verdade é que a cliente, lendo de forma rápida a mensagem, percebeu mal — e quem ficou em perigo de irritar um cliente fomos nós (ai, o medo).
Bem, o medo é escusado. Se um cliente se irritasse só por isto, não seria grande cliente: mas é este tipo de poeira que, às vezes, começa a criar atrito em cada relação pessoal ou profissional e, sem notarmos, começamos a ficar de pé atrás com a outra pessoa.
No caso, tudo correu bem. Explicámos o mal-entendido e a cliente percebeu tudo.
Mas aqui têm um exemplo da forma como a comunicação por e-mail pode estar armadilhada.
Não sou o único a dizer que o e-mail é mais perigoso do que muitas outras formas de comunicação. Mas porque será? Imagino que tenha algo a ver com ser um canal muito informal e rápido, mas simultaneamente distante.
Distante, em que sentido?
Neste sentido: ao telefone, ainda ouvimos as inflexões da voz. Ao vivo, claro está, temos a voz e o corpo todo — podemos ser informais, que rapidamente percebemos quando estamos a pisar o risco. As cartas eram comunicação à distância, mas tinham uma série de truques e tradições que ajudavam a manter uma proximidade física (havia quem deixasse o seu perfume no papel de carta…).
O e-mail é como uma carta, mas sem cheiro nem textura. E, ainda por cima, passamos muito menos tempo a pensar no que escrevemos num e-mail do que pensávamos na altura das cartas.
O e-mail, ao ser rápido, informal, mas distante, acaba por ser um campo de minas sociais.
Só como exemplo, aqui ficam as tais cinco armadilhas do e-mail (não são as únicas):
1. É fácil parecer seco ou mal-educado
Se, ao vivo, já é complicado calibrar as formas de tratamento correctas, por e-mail é um quebra-cabeças. Não sabemos como havemos de tratar quem não conhecemos — e, às vezes, mesmo quem já conhecemos. Vamos ser formais, como é normal na escrita? Ou informais, como é mais habitual na Internet?
Depois, a linguagem que usamos nos rápidos e-mails que escrevemos acaba por soar, a muitos ouvidos, como seca e impertinente.
O melhor será jogar pelo seguro e tentar ser bem-educado e até tradicional nos primeiros contactos — e, depois, se já conhecemos as pessoas, podemos usar aqueles pequenos truques que servem para adocicar as mensagens (os smileys, por exemplo).
Nunca é fácil: não sabemos como o outro lado vai ler aquilo que escrevemos. Aliás, há aplicações que analisam os e-mails dos nossos interlocutores e tentar adivinhar a forma que estes preferem, para que nos possamos adaptar às preferências de cada um. Não me parece ser necessário ir tão longe: basta parar alguns segundos e reler o e-mail que escrevemos, pensando na pessoa para quem o estamos a enviar. E, com jeito e paciência, lá vamos aprendendo a navegar os hábitos e preferências daqueles com quem conversamos por e-mail. Não é diferente do que fazemos no dia-a-dia.
2. Não é fácil explicar o que queremos
Há uns dias, um cliente enviou uma dúvida a uma colega minha. A dúvida era clara e directa. Mas, logo a seguir à dúvida, vinha uma lista de vários termos, com traduções.
Ficámos baralhados: será que a lista tinha alguma coisa a ver com a dúvida? Não parecia. Será que eram termos que nós tínhamos usado e o cliente estava a questionar? Ou seria um glossário para usar no futuro? Ou ainda erros que o cliente detectara nas nossas traduções?
Era impossível saber. Depois de perguntarmos, lá percebemos que eram traduções de outros tradutores que o cliente queria verificar. Ou seja, tínhamos de enviar orçamento, o cliente aprovaria e então, sim, lá viria a verificação da nossa parte.
É fácil desesperar e pensar: mas onde estava o cliente com a cabeça para julgar que iríamos adivinhar tudo isto?
Ora, enquanto escrevia a mensagem, o cliente sabia o que queria — mas não tinha muito tempo para reflectir um pouco sobre aquilo que nós sabíamos ou não. É muito mais fácil cair neste erro do que pensamos.
Há uns tempos, num livro de Steven Pinker de que já falei por aqui (The Sense of Style), encontrei o termo «maldição do conhecimento». É uma das razões para escrevermos mal: a dificuldade em perceber o que os outros não sabem. Nem sempre conseguimos imaginar como é não saber aquilo que sabemos — e isto tanto vale para grandes teorias científicas como para as tarefas dum projecto de tradução.
O nosso cliente sabia o que era preciso fazer. Não sabia era como explicá-lo nem tinha tempo de separar o que só ele sabia daquilo que era óbvio para todos os envolvidos.
Fez por mal? Claro que não! É inconsciente.
(Às vezes, lá caímos no exagero contrário e explicamos coisas que são óbvias. Mas o perigo é menor — só irrita um bocadinho quem recebe o e-mail. Mais vale pecar por excesso e explicar a mais do que a menos…)
3. É fácil cair no poço das conversas em grupo
Dois é bom, três é agradável, quatro já começa a ser uma multidão.
E mau, mas mesmo mau é quando mandamos mensagem a 30 pessoas a pedir opinião e, de repente, temos mais de 100 respostas e um bom debate cheio de boas ideias que se perdem na catadupa de respostas a respostas a respostas… Isto para não falarmos das dezenas de versões diferentes do documento em discussão.
Se tivermos de enviar uma mensagem a pedir opinião a 30 pessoas, talvez não seja má ideia usarmos outro método. Um documento partilhado, por exemplo, ou até um fórum. O e-mail não é um bom método de comunicação entre mais do que duas ou três pessoas.
4. Acabamos afogados em milhares de mensagens por ler
Este problema é complicado e merece um artigo só para ele.
Temos mesmo de arranjar maneira de gerir o e-mail, antes de afogarmos a nossa tranquilidade em centenas de mensagens por ler. Ficamos ansiosos e fazemos cada vez menos perante a avalanche de mensagens por ler.
Uma técnica simples, mas imediata, será tratar assinalar os e-mails por tratar e arquivar tudo o resto. Ou deixar na caixa de entrada só o que precisamos de tratar.
São duas pistas muito rápidas para soluções que ocupam livros e livros que por aí se vendem.
(Já agora, a Susana Valdez, no blogue O Tradutor, apresenta algumas aplicações para lidar com este problema.)
5. Arranjamos conflitos quase sem perceber como
Há umas semanas, recebi uma mensagem da minha contabilista. Era uma resposta a um pedido que lhe fizera para tentar resolver uma obrigação legal que nos aparecera de repente, dum dia para o outro (sim, o sistema legal e fiscal português é excelente em criar surpresas quase diárias, com obrigações que aparecem do nada, com alguma utilidade escondida que dificilmente conseguimos vislumbrar).
Ora, li a mensagem a sair do carro, para ir buscar o meu filho. Estava um pouco atrasado. Estava cansado. Estava a chover. Li aquilo e pareceu-me que ela estava a dizer que não queria fazer aquilo que eu lhe pedia.
Irritado, respondi secamente a dizer que, sendo assim, deixasse estar, que eu trataria do assunto, mas mostrando que não tinha ficado agradado.
Lá fui buscar o Simão. Saiu todo bem-disposto das escolas, a contar-me uma história que tinha acontecido nesse dia. Abracei-o e, quando acabei de o prender na cadeirinha do carro, estava, claro, muito mais bem-disposto.
Voltei a ler a mensagem e percebi que me tinha precipitado. A contabilista não me tinha dito que não queria fazer aquilo. Ela tentou cumprir a tal obrigação, mas não conseguiu, porque lhe faltava um dado essencial, que me estava a pedir.
Fiquei irritado — mas desta vez comigo mesmo. Enviei-lhe outra resposta, a pedir desculpa e a agradecer. Quando falei com ela ao vivo ainda nos rimos do assunto.
Sim: li uma mensagem a correr, presumi o pior e acabei por criar ali uma possibilidade de conflito. (E não se esqueçam que estava a chover.)
Isto acontece muito mais vezes do que pensamos. Escrevemos a correr, lemos a correr, presumimos o pior, respondemos mal, semeamos conflitos sem querer e depois regamo-los com a pressão do dia-a-dia.
O melhor é mesmo estar atento, dar o benefício da dúvida — e se alguma coisa não estiver a correr bem, telefonar ou falar ao vivo. A voz ou a presença da outra pessoa faz maravilhas pela convivência.
Só para terminar, para ninguém ficar assustado com tanta armadilha, fiquem com cinco conselhos rápidos para usar bem o e-mail:
- Usar o e-mail sem medo, porque, afinal, não deixa de ser uma forma de comunicação menos intrusiva do que o telefone e deixa à pessoa a quem nos dirigimos espaço para responder mais tarde ou mais cedo e pensar melhor no que vai dizer. Mas, quando digo «sem medo», talvez devesse acrescentar «mas sem abusar». Mensagens inúteis irritam e fazem perder tempo. Antes de enviar seja o que for, pensemos: é mesmo preciso?
- Rever a mensagem antes de mandar. Se há vantagem em conversar por e-mail, é esta: podemos pensar duas vezes. Por isso, mais vale fazer isso mesmo. Escrevemos um e-mail, mas depois olhamos para ele com olhos de ver antes de mandar. É mais difícil do que parece — mas muito importante. Tivesse eu feito o que digo aqui, não teria feito o que fiz à minha contabilista. (O Gmail, agora, até já tem uma função que permite anular o envio da mensagem depois de clicar no «Enviar». Mas só durante uns segundos…)
- Dito isto, não faz mal usar o telefone quando começamos a perceber que as mensagens de e-mail estão a provocar mal-entendidos ou algum desgaste na relação (pessoal ou profissional). Talvez até antes de haver algum mal-entendido. Se reparamos que é muito mais fácil explicar alguma coisa por telefone, toca a pegar no telefone.
- Há que usar ainda de alguma tolerância: nem todos pensamos nas mesmas coisas com a mesma intensidade ou da mesma maneira e haverá sempre quem escreva e-mails sem pensar. E há os dias maus (e a chuva!). Por isso, aqui fica um conselho que se aplica a muitas outras coisas: podemos ter alguma tolerância para com os outros e esforçarmo-nos por melhorar no que toca ao nosso próprio trabalho.
- E, por fim: sejamos claros (o que não é fácil), agradáveis (mesmo à força de smileys) e directos (dizer o que precisamos sem rodeios)…
E, pronto, vamos lá esquecer o e-mail por algumas horas, nesta altura de Carnaval.
Embora até aposte que muitos de nós vamos estar a olhar para o telemóvel enquanto vemos os desfiles ou brincamos com os nossos filhos mascarados.
O e-mail não perdoa.
Gostei do seu artigo e tem razão. No entanto, quando lido com um cliente, continuo a ser formal e escrevo os e-mails como se fossem cartas, com Exmo. Senhor ou algo do género e cumprimentos no fim. Afinal, não se perde muito mais tempo e é mais seguro.
É uma opção que me parece acertada, em muitos casos. É menos arriscado. Em caso de dúvida, mais vale ser mais formal do que mais informal, porque o informal, num e-mail, pode soar a impertinente.
Parabéns pola entrada! Moi interesante e recomendábel. No entanto, acho que falta unha armadilha/conselho arredor de non esquecer o carácter conversativo (e bidireccional), no senso de non perder de vista a necesidade (e utilidade) do feedback. Non só por cortesía, ou para confirmar a axeitada recepción dalgo, para alén das pouco certeiras confirmacións de leitura, senón mesmamente para verificar a correcta comprensión da mensaxe recebida. O silencio é unha causa frecuente de maos entendidos e confusións.