Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Cinco asneiras da língua portuguesa

A fúria de encontrar erros em todo o lado é tanta que, às vezes, os caçadores de erros caem, também eles, em asneiras. Assim, tenho visto por aí acérrimos defensores das seguintes expressões:

  1. «Bicho pelo corpo inteiro.» Por amor da língua, salvem o bicho-carpinteiro! Algumas pessoas, que não sabem o que é uma expressão idiomática, ficam irritadas quando alguém diz «estás com bicho-carpinteiro». Acham que o bicho não existe e, logo, não podemos ter uma expressão com um animal inexistente. Depois, inventaram esta do «bicho pelo corpo inteiro» (a alternativa supostamente «correcta») e acham-se, de repente, mais espertos que os outros falantes da língua. Como quase sempre, nesta tropa dos inventores de erros, há alguma falta de respeito pelos outros falantes da língua e, por conseguinte, falta de respeito pela própria língua — algo muito mais grave do que qualquer gralha.
  2. «Mal e parcamente.» Parece ser a origem da expressão «mal e porcamente». E, segundo a lógica de algumas pessoas, uma expressão uma vez inventada tem de ficar igual para todo o sempre. Ora, sendo esta expressão típica do registo popular, é habitual que mude ao longo das décadas e dos séculos. Depois, é praticamente impossível encontrar «mal e parcamente» nos registos escritos da língua (excepto em textos que querem matar o «mal e porcamente»). Ou seja, quem acha que só podemos usar «mal e parcamente» está a pensar mal e porcamente sobre a língua.
  3. «Há nada que me impeça de falar com ele.» Sim, há quem trema e chame de ignorantes quem diz «não há nada». Não pode ser, não pode ser! É uma dupla negativa! Temos de escrever «há nada»! Ora, tenham lá paciência. A oração «não há nada» está na negativa e, no caso, a língua portuguesa obriga-nos a usar duas palavras para expressar essa negativa. Dizer «há nada» é insistir num erro verdadeiro para corrigir um erro falso. A língua é complicada e desarrumada. Não sejamos simplistas nem facilitemos nestes assuntos, vale?
  4. «Pelo visto.» A expressão fixa é, desde há muito, «pelos vistos». Falta-lhe alguma lógica interna? Pois falta. Mas se é para arrumar a língua dessa maneira simplista, comecem pelo verbo ser, que tem muita falta de lógica, coitadinho. Arrumem esse e avancem depois para o resto da língua. Cá vos espero daqui a uns séculos.
  5. «A lua está mais próxima.» Esta foi uma originalidade que encontrei no Facebook: alguém chamou burros a todos os que, uma vez por outra, dizem que «a lua está maior». Porque a Lua não cresce, não é assim? Ora, desengane-se: quando dizemos «lua», assim em minúsculas, estamos a falar do disco de luz que vemos no céu e não necessariamente do astro (quando dizemos «lua nova» não estamos a falar do astro, que é o mesmo, mas da forma como o disco de luz nos entra pelos olhos). A diferença é subtil? Sim, é. Mas, lá está, os falantes da língua não são assim tão burros. São mais inteligentes do que se pensa. Este erro falso tão peculiar fica aqui como exemplo da tendência dos caçadores de erros para encontrar estupidez onde, na verdade, temos apenas a língua a funcionar como deve ser.

Entenda-se: não vou dar a volta ao contrário e dizer que as expressões acima devam ser proibidas (embora vos avise, humildemente, que a terceira frase é mesmo erro). Asneira é achar que temos de as usar obrigatoriamente em substituição das outras expressões, bem mais habituais e correctíssimas:

  • «bicho-carpinteiro»;
  • «mal e porcamente»;
  • «não há nada»;
  • «pelos vistos»;
  • «a lua está maior».

Todas estas belas expressões fazem parte da língua. Eliminá-las não nos deixa nem a falar melhor nem a pensar melhor nem o raio que o parta (será que posso usar esta expressão ou também é erro?).

Estes e outros erros falsos estão explicados no livro Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português.
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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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21 comentários
  • “Pelo visto” é habitual e correto no português brasileiro. Na verdade, não sei se algum brasileiro, em alguma região, diz ou escreve “pelos vistos”, que só ouvi na TV portuguesa e só li em textos portugueses até hoje. Mas não dá para descartar a possibilidade de que assim se diga ou se escreva em algum lugar do Brasil.

    • Em Tras-os-Montes, usamos desde sempre “pelos vistos”, “mal porcamente”, “bicho carpinteiro”, etc.. Contudo, verifico que cada vez mais as nossas expressões são esquecidas e fico triste. E sabe porque ficam esquecidas? Porque as pessoas acham que só os pobres falavam dessa maneira e vai daí, desatam a alterar as expressoes

  • Novo livro na forja: D. Quixote de la Lingua….
    Lá pelo meio, terá uns capítulos relativos a lutas contra moinhos de vento…

  • E a expressão “passado uns tempos” que encontramos em escritores consagrados como Lobo Antunes? Quem explica essa construção sintática?

      • “Há várias pessoas…” não deveria ser dado aqui como exemplo, já que a forma do verbo haver, no Presente do Indicativo, apenas é conjugada dessa forma, independentemente de singular ou plural. Assim:
        – Há uma árvore no jardim
        – Há vinte árvores no jardim

        • Como expliquei, não é um caso equivalente, mas é outro exemplo de falta de concordância superficial que é aceite (e é aliás obrigatório) em português-padrão. De referir que o verbo haver deve ser conjugado normalmente se estiver a servir de verbo auxiliar.

    • «Passado uns tempos», «Passado uns meses», «Passado umas horas»… O adjectivo “passado” levou, aqui, um processo de gramaticalização, funcionando agora como equivalente a “depois de”. Por isso é invariável. Nada obsta, porém, a que se diga «Passada uma hora». O idioma toma estas liberdades…

  • “Bicho pelo corpo inteiro”, por “Bicho carpinteiro”. Li, há algum tempo, que a primeira citação era a correcta. O que será um “Bicho Carpinteiro”? E porque se utiliza, quando adjectivamos uma pessoa que não pára quieta? Sem malícia ou segundas intenções, faço esta pergunta.
    João.

    • A definição de bicho-carpinteiro está em: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/bicho-carpinteiro.

      Quanto à razão por que dizemos “estar com bicho-carpinteiro” ou “estar com bichos-carpinteiros”: este tipo de expressão não tem de ter uma razão lógica para existir. É um erro achar que as expressões idiomáticas têm de fazer sentido. Houve um discussão interessante sobre o assunto neste post do Facebook: https://www.facebook.com/groups/observatoriodaasneira.emaccaocontraoacordo/permalink/1861535047424335/

      Transcrevo um dos meus comentários nessa discussão: «As expressões idiomáticas são expressões em que o sentido do todo não corresponde ao sentido literal das palavras. Como, em inglês, “it’s raining cats and dogs” ou, em português, “bater as botas”. Achar que as expressões idiomáticas devem ter um sentido “lógico” é um problema de desconhecimento sobre o funcionamento das línguas.»

    • Mas que pergunta mais estranha? O bicho que o povo achou por bem designar “bicho-carpinteiro” é naturalmente o bicho da madeira, o bicho que come a madeira. Nunca viu? Mas existe e é sério quando entra num móvel e em poucos meses o desfaz. Este bicho não pára, está sempre a roer; e ser for durante uma noite de insónia que ele se lembre de entrar em acção, então é mesmo irritante, tal como uma criança que nos importuna pela sua irrequietude e nós lhe dizemos que está com o “bicho-carpinteiro.

  • O bicho-carpinteiro é o bicho da madeira, anda por dentro da madeira a roer, sem parar. Quando as pessoas não conseguem parar quietas, costuma-se dizer que estão com “bichos-carpinteiros”

  • Este surgimento recente da tentativa de correcção de expressões que parecem erros é algo estranho mas terá a sua explicação: um snobismo exacerbado, absurdo, no que o snobismo tem de pior (tentar tudo explicar à luz de uma ciência exacta, que a língua, sendo ciência, não é); é uma atitude parecida com a dos economistas que, trabalhando com ciências exactas (Economia e Matemática), a realidade veio dizer-nos que não têm, nos últimos anos, sido nada exactos. Sobre o bicho carpinteiro já me pronunciei em baixo. Sobre o “mal e porcamente” pergunto: e que lógica terá utilizarmos uma expressão que usa um advérbio de cariz negativo (mal) para logo lhe juntarmos um de sentido contrário (parco)? Fazer mal e porcamente, além de expressão correcta e se quiserem idiomática, é que tem toda a lógica.
    “(Não) há nada” que não se discuta. Pela mesma ordem de raciocínio dos senhores correctores diremos: se o nada não existe (nihil) como podemos então dizer que “há nada”, para a expressão ficar correcta. Em muitos contextos que não apenas este, o Português faz uso da dupla negativa para ser claro. Já o Latim, por norma não gostava disso. Como diríamos então a expressão “Não quero nada disso?” E que expressividade teríamos se disséssemos “Quero nada disso”. Valha-nos Deus.
    A Lua está maior. A Lua está mesmo maior. Estes senhores nasceram ontem e a Língua já cá anda *há séculos, por isso o povo a moldou como bem quis e segundo os seus conhecimentos, que nem sempre eram muitos em Astronomia mas eram-no no domínio da Língua; daí termos expressões tão ricas de sentido e tão belas de sonoridade, em Português.
    Já quanto ao “trata-se de duas pessoas” e “há séculos) é mesmo assim sem qualquer concordância aparente seja ela superficial ou profunda. Estas duas frases não têm sujeito; em Português, o verbo concorda com o sujeito, logo, sem sujeito, não pode haver plural. São formas impessoais do verbo. Este tipo de construção só aparece com as formas na terceira pessoa do singular, mesmo em formas verbais compostas: “Devia haver regras mais claras” e não “deviam haver”. É tão antiga e justificada esta regra que algumas pessoas, mais longe da erudição e mais próximas da significação ainda dizem expressões destas: “Ele há horas do Diabo”; “Ele há coisas do arco-da-velha”, encontrando, desta forma, sentido para aquele singular verbal.

    • Concordo inteiramente com o seu comentário! Esse exemplo do “ele há horas” é uma explicação perfeita de como aquilo que parece aos olhos desatentos uma falta de concordância é, na realidade, a forma como a língua funciona há muito. Mas estes snobs da língua acham que, em cinco minutos, conseguem perceber mais do que a sabedoria colectiva inscrita na maneira como a língua funciona.

      Uma pergunta: posso citar o seu comentário num artigo novo?

    • No meu tempo de estudante liceal aprendíamos que, nos casos de “há dias” e similares, o sujeito é impessoal e sempre conjugado na terceira pessoa do singular. Em “há dias”, ao contrário do que parece evidente, “dias” não é o sujeito mas o complemento directo. Ainda me recordo de muitos (colegas e não só) dizerem “ele há coisas”.

  • Essa da alteração do dito “bicho de carpinteiro” faz recordar-me um texto que correu pela Net com a “correcção” de uma série de ditados em língua portuguesa. De repente, recordo-me de uma: “Não seria ‘quem tem boca vai a Roma’, mas ‘quem boca vaia Roma”. A lista era atribuída a um senhor (cujo nome me falha agora) que por mais de uma vez negou a autoria, denunciando a “correcção”. Um dos problemas é que basta alguém avançar com uma declaração atribuída a um nome famoso (ou desconhecido, mas sonante) para que haja sempre um crédulo a tomá-la como segura, mesmo que a intenção do autor seja originalmente a ironia. Se temos boca, continuemos, pois, a ir a Roma porque há-de haver sempre alguém a indicar-nos o caminho correcto, que nem sempre o mais curto ou o mais lógico. Nestas coisas de contradições lógicas da língua recordo que, nos idos de 60, quando dava instrução aos soldados da minha companhia e os mandava “pôr as mãos atrás das costas”, não podia deixar de esboçar um sorriso porque “atrás das costas” é, pela lógica, à frente… Felizmente eles mandavam a lógica às malvas e colocavam-nas onde eu ordenara – nas costas, ou melhor, na região lombar, já agora, porque de facto era aí que eu as queria.

  • É em todo o país que se usa “Ele há dias”? O fenômeno é antigo na língua? Não se verifica no Brasil, até onde sei.

    Tenho curiosidade em saber como se deu o processo de redução semântica desse verbo no português e no espanhol. No português brasileiro, haver impessoal só não morreu de vez porque é frequente na fala e na escrita monitoradas. Na fala e na escrita coloquiais, só se usa mesmo ter, ao menos nos lugares do Brasil por onde andei mais.

    Os gramáticos tradicionais se limitam a condenar como errado o uso de ter impessoal, desconsiderando que esse uso é a culminância de um processo antigo na língua, em que haver foi cedendo mais e mais espaço a ter.

    Avere e avoir conservam todos os sentidos que haver perdeu em português?

  • Conheço o bicho carpinteiro com dois nomes: cupim e broca. “Não há nada” não se resolve com uma vírgula?: “Não há, nada”, ou “Nada há, não”; o mesmo para “Não quero nada disso” por “Não quero, nada disso”. Abro estas questões: O que faz mais sentido, “Risco de vida” ou “Risco de morte”? “Quem não tem cão, caça com gato” ou “Quem não tem cão caça como gato”.
    Na minha opinião, o risco está naquilo que existe, a vida. Já o animal que acompanha o homem na caçada é o cachorro. Se não tem um, faz como gato, caça sozinho.

Certas Palavras

Autor

Marco Neves

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