Já vos disse aqui que as outras línguas ibéricas são, para mim, um estranho prazer — uma espécie de línguas secretas que nem todos vêem. Ora, os prazeres são para partilhar e, depois de alguns dias em terras catalãs, lembrei-me de vos trazer cinco palavras que me fazem cócegas nessa língua do outro lado da península.
Nit
Dizer «bona nit!» é simpático, mas para um português o estranho é ouvir um «bon dia» assim de chofre, sem nada que desmanche a ilusão que estamos a ouvir a nossa língua. Não estamos. Mas, durante aqueles segundos, parece.
Bem, avancemos então no dia. «Boa tarde» é «bona tarda». E, depois, a noite… A palavra «nit» é intrigante. Sim, estamos a caminhar até à «nuit» francesa, mas não temos nenhum «u» e estamos longe da «noite» portuguesa ou da «noche» castelhana, sempre com o «O» a lembrar-nos uma certa escuridão.
Sim, isto sou eu a delirar. A escuridão da noite não está nas palavras e sim no céu, mas o que querem? Quando oiço «nit» lembro-me de duas coisas: dum qualquer grito de alegria nocturna e ainda duns certos cavaleiros ingleses que gritavam «NIIII!».
Tardor
Não sei se me soa a Terra Média («e os cavaleiros puseram-se a caminho em direção às negras terras de Tardor») ou a qualquer coisa de tardio, ainda um pouco quente — ou talvez me soe ao aspecto ardido das folhas castanhas no chão. Não faço ideia, mas sei que soa bem. É «outono» em catalão, mas lembra-me também o entardecer e uma certa mansidão. As outras línguas são assim: às vezes põem-nos a ver as coisas pela primeira vez.
Cap
Esta é uma estranha palavra que tanto quer dizer «cabeça», como «chefe» e ainda «cabo», «nenhum» — ou «em direcção a». E olhem que não fica por aqui.
Ou seja, «cap al cap» será «em direcção ao cabo». «No tinc cap pressa» é «não tenho nenhuma pressa». «El cap del meu cap» — «a cabeça do meu chefe». Uma palavra bem cheia… (E espero não ter metido os pés pelas mãos com o atrevimento de escrever umas frases em catalão.)
Seny
Como nós, que temos sempre a saudade na boca quando nos falam do que é ser português, também os catalães tentam definir o seu carácter com uma ou duas palavras. Neste caso, duas: «seny» (bom senso) e «rauxa» (loucura) — uma estranha mistura que há uns anos li descrita (não sei bem onde) como alguém a tratar de negócios à varanda do hotel, mas todo nu. E se calhar com um bigode à Dali. Como sempre, estas caracterizações nacionais são perigosas, redutoras, ilusórias — o que quiserem. Mas aqui fica a tal «seny» nem que seja para vos dizer que o «ny» se lê «nh». Sim, em catalão, Catalunha escreve-se «Catalunya».
Una mica més: dona, germà, menjar, parlar, dinar, sopar, esmorzar, novel·la…
Não me consegui ficar pelas cinco… Não sei porquê, mas acho a expressão «una mica» muito engraçada (quer dizer «um pouco»). Também acho curiosa a palavra «dona» (mulher) ou «germà» (irmão) ou «menjar» (comer) ou «parlar» (falar). E estranho, estranho é dizer «dinar» para o «almoço». Já o jantar é «sopar». E o pequeno-almoço? «Esmorzar». Depois, temos ainda isto: «dona» no plural dá «dones» (mas o «e» lê-se quase como o nosso «a»). «Irmã» é «germana» e, assim, irmãs são «germanes». Ah, e «primo» é «cosí».
Para terminar, fiquem com a palavra «novel·la» (romance). Tem aquele símbolo estranho, exclusivamente catalão: assinala que os dois LL não se devem ler como o nosso «lh», mas antes como dois LL separados, um em cada sílaba. «Una novel·la excel·lent» é, por exemplo, La plaça del diamant, de Mercè Rodoreda (notem o «ç», que também existe em catalão).
Experimentem lê-la. Devagar, com a língua entre os dentes e o dedo a acompanhar as palavras, podemos ir aprendendo esta outra língua que nos faz cócegas, ao mesmo tempo tão próxima e tão distante.
Fins demà!
Magnífico… e poético!
Eu também acho que as letras têm cores; o O, para mim, é azul-escuro, e o U negro… O A é branco, o E verde, o F verde-escuro, o D castanho, o I vermelho…
O Mário parece-me sofrer da mais feliz doença do mundo: a sinestesia! Parabéns! 🙂
Estou lendo um texto escrito em português no início do século XX e me deparei com “acostumal-a”, “salvaguardal-a”, “incommodal-as”. Já nem me parece tão estranho assim o catalão 🙂
Moltes gràcies per aquest magnífic article sobre la nostra llengua.
Salutacions des d’Alcoi (Alacant)
E eu também gosto do gos e da miqueta. E da amanida amb pollastre…
Infelizmente eu não sei Português, mas eu gostei da entrada. Parabéns em seu blog. Apenas queria comentar: “. Eu não tenho nenhuma pressa”, a palavra “pressa” é incontável, em Catalão, portanto, não dizer “no tinc cap pressa”, mas “no tinc gens de pressa”.
Felicitacions pel blog des de València
Muito obrigado! Tento falar o melhor catalão possível, mas é fácil cair em erros desses. 🙂 Abraço e obrigado!
Curiós que vaig sentir parlar moltes vegades “no tinc cap pressa”. Encara que hem d’escriure les adverbis negatius en concordància, em sembla que el “cap” no fa baralla amb el “no”. Igual que ” no mirar cap ni cara”, o bé “no tenir cap ni peus”.
Sóc portuguesa i per sort (o potser més qu’aixó) sé català. I el text està de meravella.
Penso que toda a língua catalã me faz cócegas. No início, quando ouvi pareceu-me estranha, como se fosse uma mistura de português, castelhano, francês e italiano. Deslumbrante! Com o hábito torna-se menos estranha e mais próxima. É uma língua muito rica e curiosa.
O povo da Catalão deve merecer da nossa parte, o nossa ( Portugueses) maior consideração, e respeito.
Porque sempre tivemos problemas com a Espanha/Monárquica.
E por fim,; existe um ditado muito antigo , de Espanha, nem bom vento, nem bom casamento”!
Viva o Povo Catalunha!