Não sei se aconteceu a todos ou se é coisa só de alguns, mas quando eu era muito novo tinha tendência para o chamado pensamento mágico: por exemplo, imaginava coisas más para que elas não acontecessem («se imaginei, não acontece»), ou criava desafios malucos para obrigar a que as coisas corressem bem («se acertar com a bola no cesto, amanhã o teste corre-me bem»). São apenas dois exemplos de pensamento supersticioso. Podem juntar muitos outros exemplos: se pisar apenas as pedras azuis, o dia corre bem; se rezar antes de levantar voo, o avião não cai — e por aí fora.
Ora, nestas coisas da língua, também há superstições. Querem ver? Aqui vão cinco exemplos:
1. «A língua reflecte a alma dum povo»
Desde a constante referência à «saudade» como palavra exclusiva dos portugueses, até ao recente exemplo do vídeo em que um candidato às eleições mostrava (ou pensava mostrar) como a nossa forma de agradecer (o famoso «obrigado») tem uma relação profunda com a forma de ser dos portugueses — há muitos casos em que acreditamos que a nossa língua reflecte a nossa alma nacional, seja lá o que isso for.
A língua são regras inconscientes e palavras que usamos por nos serem úteis. Estas regras e estas palavras acabam por ser símbolo da nossa identidade, em especial as regras e as palavras que são escolhidas para fazer parte daquilo que chamamos a norma. Mas tudo isto tem muito mais de aleatório do que podemos pensar: que os falantes de português usem «obrigado» e não outra expressão não é sinal que somos melhores do que os outros seja no que for: afinal, um português a dizer, em inglês, «Thank you!» estará a ser mais ingrato do que quando diz «Obrigado»? Ou seja, somos mais ou menos agradecidos dependendo da língua que estamos a falar no momento? Não me parece!
2. «A língua tem uma lógica interna que tem de ser respeitada»
A língua tem regras, mas estas são normalmente muito mais complexas do que as lógicas de algibeira que lhe queremos impor. Há quem diga que temos de dizer «quero um copo de água», porque «queria» está no passado. Disparate. Há quem diga que não podemos usar «saudades tuas» porque a lógica interna da língua obriga a que digamos «saudades de ti». Há quem diga que não podemos dizer «o comer» porque «comer» é verbo (como se as palavras não pudessem saltar de classe)…
Se formos por esse caminho, a lógica interna da língua obriga a usar o verbo «haver» no plural, porque os outros verbos são assim. E, no entanto, o português-padrão obriga a usar o verbo «haver» quase sempre no singular. Lá está: quem invoca a lógica interna da língua para corrigir uma expressão ou palavra que os outros consideram correcta está, quase sempre, a inventar essa tal lógica interna naquele preciso momento (ou inventou-a um belo dia e decidir chatear os outros com a mesma). A «lógica interna da língua» é a língua tal como ela existe: não está noutro qualquer lugar.
A língua tem regras, tem excepções às regras, tem padrões parciais, tem complicações sem fim. É assim em todas as línguas e querer arrumá-las à força só pode dar mau resultado. Deixem lá estar a língua sossegada: aprendamo-la o melhor possível, respeitando as suas manias e faltas de lógica. Ninguém pensa pior por causa disso.
3. «Se mudarmos a sintaxe da língua, pensamos de forma mais lógica»
Há uns anos, tive uma grande discussão por causa do uso de expressões como «não há nada». Parece que algumas pessoas julgam que é possível pensar de forma mais lógica mudando a forma como a língua funciona.
Segundo quem partilha dessa superstição, como «não há nada» é uma expressão negativa, devia ter uma só palavra negativa. Bastaria «há nada». Assim ficaríamos todos a pensar melhor.
Ora, a sintaxe das línguas não funciona assim: se eu disser «não há nada que não me aconteça» toda a gente percebe que estou a dizer que me acontece tudo. A sintaxe expressa claramente duas negativas que se anulam uma à outra: que seja preciso três palavras com «n» (não, nada e não) para dizer isso mesmo não aquece nem arrefece o pensamento. Se conseguíssemos mudar a regra (e nunca conseguiríamos de forma consciente), os portugueses continuariam a pensar de forma tão lógica (ou pouco lógica) como antes.
Sim, é preciso pensar bem. Mas querer enxertar uma regra qualquer na sintaxe da língua para pensar melhor é o mesmo que querer plantar uma terceira perna num corredor para este correr melhor.
O que temos a fazer é pensar bem — o que não é fácil — e depois aprender a nossa língua o melhor possível para podermos expressar com clareza o pensamento. Mudar regras da sintaxe da língua que calhou estarmos a falar para pensar melhor é uma superstição que não leva a lado nenhum.
(Já mais recentemente, li um texto em que se dizia que usar «o belo» em vez de «a beleza» demonstrava uma grande confusão mental por parte dos portugueses, porque «belo» é um adjectivo, uma qualidade, e os pobres dos portugueses confundem tudo ao usá-lo como substantivo. Proibíssemos dizer «o belo» e lá ficariam os portugueses a pensar melhor, não é? Não, não é: pensar bem é mais difícil do que isso.)
4. «A melhor forma de aprender português é decorar listas de erros»
Sim, há mesmo quem ache que o português precisa de ajuda: que a língua está infestada de erros. Vai na volta, colige listas imensas de erros, para pôr os portugueses a falar a língua como devia ser, ou seja, como era falada sabe-se lá quando (ou então como é falada na mente do gramático inflexível).
Tudo estaria mais ou menos bem se os erros fossem verdadeiros. Mas, se a lista pretende ensinar os portugueses a falar português, há grandes probabilidades que inclua muitos erros falsos, de que temos falado por aqui. Sim, os portugueses distraem-se e erram muitas vezes: mas não andam a falar uma língua que não seja a portuguesa, com regras todas erradas. Se todos os portugueses usam esta ou aquela expressão, convém dar o benefício da dúvida.
Antes de falar destas coisas, um mínimo de respeito pelos falantes é mais do que recomendável. E se mesmo assim se quiser compilar erros (normalmente, serão, neste caso, palavras e construções muito portuguesas, mas que, por acaso, não são aceites pela norma), que se seja rigoroso, tolerante e conhecedor da língua. Faça-se mais do que listas de erros. Mostre-se bons exemplos, aponte-se bons textos. Será bem melhor do que andar armado em legislador penal da língua.
Não, as listas de erros não nos põem a falar melhor a nossa língua. A melhor forma de aprender português é usando-o. Ler muito, escrever bastante, falar imenso, ouvir com atenção. Tudo sem superstições que só nos deixam mais longe de compreender a nossa língua.
5. «Os regionalismos e os estrangeirismos fazem mal à pureza da língua»
Sim, irritam os discursos cheios de jargão e estrangeirismos quando revelam falta de capacidade do falante para se adaptar ao público para quem está a falar. Que um cientista use palavras específicas de cada disciplina entre cientistas não só se compreende, como até se incentiva. Que depois não consiga descer à terra e explicar a todos o que descobriu já é menos bom. Quando digo cientistas, posso substituir por: economistas, historiadores, empresários, e por aí fora. Não há profissão que escape à tendência muito fácil de falar com todos como se fala entre o clube restrito de cada profissão.
E, sim, havendo forma de optar, não faz mal nenhum optar pela palavra portuguesa em vez duma palavra estrangeira. Mas depois, começamos a exagerar: começamos à caça de impurezas, começamos a fechar a língua às outras línguas.
Se continuarmos por esse caminho, acabamos por ter de deitar fora uma parte muito significativa dos dicionários portugueses. Haverá mesmo alguma palavra que seja apenas portuguesa, pura e donzela? Não me parece. E se houvesse, que triste palavra seria.
Já quanto aos regionalismos, ainda acho mais estranho esse horror que alguns sentem: sim, há mais palavras para lá da norma. Há quem use formas verbais que no Chiado seriam erradas. Há quem diga palavras lá da terra. Há quem conheça mais português para lá da norma.
Serão as formas da norma-padrão melhores do que as outras? Não. Calhou serem as escolhidas e por isso são úteis e temos de as conhecer — mas as outras formas todas, espalhadas por esse país, também existem e são saborosas, no sítio certo. E às vezes até no sítio errado… Afinal, também delas se alimenta a literatura, por exemplo.
Por isso, acabo a fazer uma recomendação: menos superstições, e mais literatura — para aproveitarmos a nossa saborosa língua sem medos. E quanto à lógica da língua ou falta dela, menos paternalismo linguístico e mais pensamento claro, se não for pedir muito. Merci!
Ó égua!, Marco Neves, excelente artigo. Dá o que pensar! Obrigada
Um dia destes dei por mim a ajudar um dos meus filhos nos seus trabalhos da disciplina de português: definir quas as ‘Funções Sintáticas’ de um determinado texto. Primaira coisa a fazer, saber o que são ‘Funções Sintáticas’. São os famosos “Sujeito”, “Predicado” e “Complementos; Directo e Indirecto”.
E dei por mim a pensar: “Na verdade… para que serve isto? O que é que lhe adianta para a ‘vida real’, dividir uma série de frases em ‘sujeito’, ‘complemento directo’, predicado (e já agora, porque raio é ‘predicado’ em vez de verbo??)”
É claro que são necessárias regras para que uma lingua seja bem ‘tratada’, mas considero que falo, leio e escrevo bem português, mesmo tendo esquecido à muito tempo essas definições de Sujeito Predicado e etc e tal….
Mas pronto… possivelmente isto faria com que fosse necessário analisar toda a forma de ensino em Portugal (e não só o ensino de português)….
Não deixa de ser importante saber os nomes dessas funções, para podermos discutir a língua mais facilmente (discutir neste sentido: será que se usar isto ou aquilo nesta frase, a mesma fica mais clara?). Mas, de facto, no caso da nossa língua materna, as regras são inconscientes e todos as temos cá dentro. O bom ensino do português deve, acima de tudo, dar a conhecer aos alunos bons textos e deve treiná-los na escrita e na oralidade. Mas, lá está, isso levava-nos a uma discussão imensa sobre o ensino. 🙂
Gostei do artigo e achei útil a sua leitura, e lá está; só não achei graça, porque não acho graça, à expressão “Vai na volta”.