Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Como criar palavras novas?

Um percurso pelos mecanismos de criação de novas palavras.

Que mecanismos da língua permitem aos falantes criar palavras? Para começar, a imaginação, claro está – embora seja necessário dizer que a nossa imaginação não chega. Uma palavra pode fazer muito sentido a quem a usou pela primeira vez e perder-se para sempre, sem que mais falantes a adoptem como sua. A língua está continuamente a enriquecer-se com novos vocábulos – mas para que fiquem é preciso que os falantes os usem.

Há materiais latinos e gregos que se mantêm ao dispor para a criação de neologismos. Depois, temos os estrangeirismos, ou seja, a importação de palavras de outras línguas – um mecanismo que existe em todos os idiomas e que é constante, variando as línguas habituais de importação. Temos palavras com origens muito díspares, embora três línguas se destaquem, por terem sido, sucessivamente, as línguas estrangeiras com mais prestígio em Portugal: o castelhano, o francês e o inglês.

Seja como for, com base nos materiais já existentes, a língua tem processos de formação de palavras. Temos, logo à partida, a flexão: permite transformar, por exemplo, «comer» em «comerei».

Depois, temos a derivação afixal, ou seja, a criação de novas palavras pela junção de afixos. Começamos pela derivação afixal por prefixação, que nos deixa transformar «francês» em «antifrancês» – só para dar um exemplo.

A derivação afixal por sufixação acontece, por exemplo, quando passamos de «teatro» para «teatral» ou de «teatral» para «teatralmente». Esta transformação pode levar a palavra de uma classe para outra («página» > «paginar») ou criar uma nova palavra dentro da mesma classe («dormir» > «dormitar»).

Já a derivação afixal parassintética dá-se quando juntamos um prefixo e um sufixo e passamos de «doido» para «endoidecer».

A derivação não-afixal transforma verbos em nomes através da remoção dos elementos típicos dos verbos. Assim, passamos de «debater» para «debate» ou de «atacar» para «ataque».

A derivação por conversão acontece quando passamos uma palavra de uma categoria para outra sem lhe mudar a forma: do verbo «saber» passamos para o substantivo «saber» em «o saber não ocupa lugar».

A passagem de palavras de uma classe para outra é muito comum em certos casos. Os adjectivos, por exemplo, frequentemente passam a ocupar o lugar do nome. Aliás, há uma imensidão de palavras que servem tanto de nome como de adjectivo: «o vermelho», «o português», «o tímido», entre tantas, tantas outras.

Note-se que uma palavra pode percorrer vários caminhos, criando outras de significado semelhante, mas com subtis diferenças de conotação e uso. A partir de «belo», um adjectivo, criámos dois nomes: «beleza» (por derivação afixal) e «belo» (por conversão).

Já a composição permite criar palavras através da junção de mais palavras. Por exemplo, «saia-casaco», «fim-de-semana», «guarda-redes».

Temos, depois, outros processos um pouco menos sistemáticos de alargamento do léxico da língua. Há vários exemplos: palavras que se tornam outras por extensão semântica («rato» – do computador); amálgamas de partes de outras palavras («informática»); siglas («EUA»); acrónimos («ONU»); onomatopeias («tchim-tchim»); truncação («mota»).

A extensão semântica é particularmente interessante. Temos casos em que a língua assume uma metáfora ou uma metonímia para dar um novo significado a uma palavra. Assim, como o mercúrio subia no termómetro, a temperatura também passou a subir, apesar de não haver qualquer deslocação em altura…

Por outro lado, como os antigos autoclismos implicavam puxar a corrente, ainda hoje dizemos «puxar o autoclismo», mesmo que, na verdade, estejamos a carregar num botão. Esta construção é, no fundo, um fóssil linguístico.

Com alguma imaginação, os sons da língua permitem criar palavras infinitas – e as regras sintácticas permitem criar frases infinitas.

Artigo baseado numa secção da Gramática para Todos: o Português na Ponta da Língua.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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