Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Como pensa um terrorista?

1.

O que passa pela cabeça de alguém enquanto mata estudantes numa universidade? O que passa pela cabeça de quem tenta saber a religião duma jovem universitária para decidir se a mata com um tiro na cabeça?

2.  

Ninguém pode saber. No entanto, ao contrário do que gostaríamos de pensar, estes terroristas não são assim tão diferentes de nós. Recue-se alguns séculos e na nossa bela Lisboa tínhamos famílias a assistir, entre risos e alegria comunitária, à execução de judeus porque eram judeus.

3.

Há qualquer coisa de muito antigo nesta barbárie. O que temos ali é tribalismo em estado puro, acicatado pela religião. Na cabeça daqueles assassinos estará, certamente, a certeza de que “estes não são como nós”; a certeza de que “estes merecem morrer”; a certeza de que Deus não os ama como nos ama a nós.

4.

Sim, a religião pode ser muitas coisas — e muitas coisas boas — mas também pode ser o fermento do ódio tribal. Se tivermos a certeza de que os outros não são filhos do mesmo Deus, será mais fácil matá-los. O que importa é Deus e os seus fiéis. Os infiéis, esses, estão perdidos para toda a eternidade; mais vale acabar com eles. Na cabeça dum terrorista religioso, o que interessa quando olhamos para outra pessoa é saber se acredita ou não no exacto Deus a que nos calhou em sorte submeter-nos.

5.

Mas não nos concentremos na religião. Afinal, há quem mate por nacionalismo — e mesmo quem mate por clubismo. Acima de tudo, o que me parece que podemos encontrar na cabeça dum terrorista é tribalismo.

O que quero dizer com tribalismo? Quero dizer isto: o sangue a ferver de ódio por quem não é do nosso grupo (seja lá que grupo for) e um desprezo profundo por essa ideia descabida de que todos os humanos são parecidos e que a nossa verdadeira tribo é a nossa espécie.

Esta ideia de que todos os humanos são parecidos é uma ideia revolucionária, muito recente, complicada, que vai contra a corrente do nosso sangue violento. E é por isso que estes terroristas são, acima de tudo, anti-humanistas: para eles, os seres humanos só valem enquanto membros dum qualquer grupo e não como parte da humanidade.

Contra isto, convém dizer sem rodeios que nós somos como aqueles jovens mortos numa universidade do Quénia. Depois, convém não esquecer outra coisa: mesmo que eles não o saibam ou nos odeiem por dizermos isto, somos também como aqueles que puxam o gatilho.

Sim, é verdade: temos em nós a capacidade para sermos tão tribais como qualquer terrorista. Mas também temos dentro de nós a capacidade para ultrapassar esse tribalismo cruel. Por isso, convém deixar claro: estaremos sempre do lado dos que morrem por carregar aos ombros uma qualquer identidade que provavelmente nem escolheram.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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