Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Como traduzir nomes de cidades?

Em Leipzig, olho com atenção para o nome da cidade. Parece haver uma versão portuguesa, mas praticamente ninguém a conhece.

Onde fica Lípsia?

Por motivos que ainda hei-de explicar por aqui, estive em Leipzig há poucos dias. Como acontece a quase todas as pessoas que viajam, usei o atlas que levo no bolso: o Google Maps (que é muito útil, mas também já me levou por caminhos nunca dantes percorridos por ninguém — e não no bom sentido).

Ora, se tiver o tal atlas de bolso na versão portuguesa e me puser a procurar a cidade alemã onde vim parar, encontro este nome curioso: «Lípsia». Quis vir a Leipzig, mas cheguei a Lípsia.

Este nome não aparece em nenhuma conversa entre portugueses («Então, gostaste de Lípsia?») e, mesmo olhando para os registos históricos do português escrito ao longo dos séculos, é muito difícil encontrá-lo. É um nome de origem latina, sim, é usado em idiomas como o italiano, mas quando olhamos para a nossa língua, aparece numa ou noutra obra de referência — e pouco mais. Ah, sim, também aparece na Wikipédia, provável fonte do nome que encontramos no Google Maps.

Não é que, por cá, recusemos dar nomes portugueses a cidades estrangeiras. Aliás, na Alemanha, há muitas cidades com nomes bem portugueses: Munique, Estugarda, Colónia, Hamburgo e Berlim, por exemplo. Estes nomes de cidades estrangeiras traduzidos para a nossa língua chamam-se exónimos. Há muitos também noutros países: Londres, Nova Iorque, Helsínquia, Pequim… Podia continuar pelo mundo fora.

As outras línguas também os têm. Lisboa é, em inglês, «Lisbon». Os alemães chamam «Lissabon» a Lisboa, os franceses «Lisbonne» — e há muitas cidades por esse mundo fora com muitos nomes diferentes conforme a língua.

Agora, Leipzig não costuma ser Lípsia em português, apesar do que nos diz o telemóvel…

Nomes que se traduzem

É por estas e por outras que um tradutor sorri quando alguém diz «os nomes próprios não se traduzem!». Não é bem assim. Como em tudo o que se relaciona com tradução, é mais complicado do que parece. Sim, muitas cidades têm nomes que se traduzem.

Por outro lado, há exónimos que se vão perdendo. Um exemplo é o nome inglês do Porto, que aparece em textos mais cuidados como «Oporto». É, no entanto, cada vez mais raro (por outro lado, continua bem vivo em castelhano). Há também exónimos portugueses que pouco se usam: «Lípsia», como vimos, mas também «Francoforte», só para dar dois exemplos alemães.

O que fazer quando temos de traduzir o nome da cidade? Bem, devemos tentar saber se existe um exónimo e saber qual é o uso mais habitual em português, no género de texto em particular, nas últimas décadas. Há também livros de estilo e listas que nos ajudam (esta lista preparada pelos serviços da União Europeia inclui vários exónimos na lista de capitais).

Se não tivermos cuidado, podemos acabar por usar um exónimo que ninguém conhece — ou então, pelo contrário, podemos cair no erro de não usar o nome tradicional português. Se encontrarmos o nome «Genève» num texto, temos o exónimo «Genebra» à mão de semear (semear na nossa tradução, pois então).

Há quem encontre o problema pela primeira vez e não perceba o problema dos tradutores: ora, use-se sempre o nome original, ponto final! No caso de cidades sem exónimo, concordo. Não vale a pena andar a aportuguesar nomes de cidades estrangeiras — a não ser que estes já existam. Mas aplicar o princípio de forma geral acaba por atrapalhar mais do que ajudar, como tende a acontecer com os princípios criados por quem não encontra o problema todos os dias. Poucos portugueses aceitariam encontrar “London” num texto português. E nomes chineses ou japoneses? Que fazer?

O uso continuado da língua é o melhor critério — embora não seja propriamente fácil de aplicar. Devemos tentar saber o que nome de facto se usa e se tem usado nas últimas décadas para designar a cidade em particular.

Cidades de vários nomes

Há problemas bicudos em que nem este critério ajuda: há topónimos que foram introduzidos pelo poder colonial e são sentidos como imposições pelos habitantes, que os tentam mudar, mesmo na língua colonial. Um exemplo é Bombaim, cidade que tem hoje o nome oficial «Mumbai», que as autoridades locais pedem para ser respeitado nas outras línguas.

Também existem casos como o nome da capital da Ucrânia, cidade que tem um exónimo português pouco mais usado que Lípsia: «Quieve». Ora, o uso habitual não é este exónimo, mas uma transliteração, ou seja, a escrita do nome original usando o nosso alfabeto (e não o cirílico). «Kiev» é a transliteração do nome em russo. No contexto da invasão russa, muitos consideraram que era tempo de transliterar o nome ucraniano e não o russo. Assim, encontramos hoje «Kyiv» em muitos jornais. Se um tradutor estiver a traduzir do inglês, talvez seja fácil seguir a opção do original (a não ser que a editora ou publicação que lhe tiver pedido o trabalho siga outra opção). Mas imaginemos que o tradutor está a traduzir um texto a partir do russo: usa a versão ligada ao original ou ao uso mais recente em português?

Este exemplo lembra-nos algo importante: a ideia de que uma cidade tem um nome próprio na sua língua e outros nomes estrangeiros peca por simplista. As cidades sempre tiveram vários nomes, porque as cidades sempre foram vividas em várias línguas. Muitos habitantes de Kyiv também falam russo. Qual é o nome original de Bruxelas? Estrasburgo já foi uma cidade de língua alemã. E o Luxemburgo? E aquela cidade galega que tem o nome português «Corunha», mas muitos insistem em continuar a dizer «La Coruña»? Não faz muito sentido: o nome oficial da cidade é «A Coruña», que pode muito bem ser ortograficamente adaptado à nossa língua.

Enfim, qualquer cidade tem muitos nomes. Há cidades que mudam várias vezes de nome mesmo dentro de cada língua, como Constantinopla, aliás Bizâncio, aliás Istambul (todos estes são exónimos portugueses, note-se).

Traduções e complicações

A questão é difícil (e nem pensámos na questão dos nomes dos países), mas os tradutores estão habituados a ela: têm de tomar em consideração o uso continuado da língua, a história da cidade e das palavras, o texto em particular que estão a traduzir e ainda as opções em cima da mesa. Por vezes, têm também de ter em conta os critérios de outros, clientes e não só. No fim, é preciso pensar e escolher.

Os tradutores também estão habituados às impaciências de todos os que pensam que isto é simples. Sim, é simples até ao momento em que encontramos as complicações — e elas estão sempre à espreita. Se até a tradução dos nomes das cidades é complicada, o que dizer de tudo o resto?

(Uma versão deste texto foi publicada como crónica no Sapo 24.)

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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1 comentário
  • No caso do espanhol em Espanha a cousa complica-se extraordinariamente, porque muitos dos nomes de lugares do reino de Espanha não são castelhanos. Nomes em galego, astur-leonês, basco, aragonês, aranês, catalão… são habituais em grande parte do território. A castelhanizaçao forçosa destes nomes em épocas anteriores causou que a recuperação dos topónimos originais fosse o resultado duma longa luita legal desde que Franco morreu.

    Por isso sempre há polémicas quando algum famoso ou empresa espanhola utiliza os nomes deturpados das cidades, vilas, rios e mesmo países. Na Galiza dous clássicos que chegam no verão ao tempo que a invasão de “fode-chinchos” (turistas da capital espanhola pouco respeitosos com os costumes locais) são o uso de Orense e Sangenjo (pronunciado com a j castelhana). De facto, estes nomes deturpados junto com a bandeira espanhola são armas dos votantes de Vox contra toda cultura não castelhana no Reino de Espanha desde há uns anos.

    Por razões de reparação histórica e mesmo simples educação instaurou-se durante os primeiros anos da democracia, o costume de respeitar os nomes originais mesmo falando em castelhano. Era normal ler e ouvir Ourense, Lleida, Girona ou Euskadi nesses anos. A volta da ultra direita fai que este costume vaia sendo menos popular.

    Daquela, para não ofender muita gente, o que eu costumo é escrever quando falo espanhol é Catalunya, Ourense, Euskadi, Girona, Sanxenxo… É dizer, usar o nome legalmente apoiado. Só uso Bilbao em vez de Bilbo, e poucos mais.

    É complicado.

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