Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

O dia em que confundi a Grécia com Portugal

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Recordo-me de ter lido há uns anos a história dum cantor que veio a um dos festivais de Verão — ia jurar que foi Vilar de Mouros —, chegou-se ao palco e gritou, entusiasmado: «Boa noite, Chipre!»

É bem possível que, no avião, entre groupies e coca-cola, ninguém lhe tivesse dito onde ia aterrar — e no fundo Portugal e Chipre são praticamente a mesma coisa (só espero que a Turquia não nos invada o Norte).

Bem, sorte teve ele. Tivesse dito «Boa noite, Espanha!» e teria levado com uma garrafa na tola (ou pior). Assim, foi um fartote de risos.

Agora, o problema desta história é este: procuro e procuro e não encontro referências ao episódio na Grande Enciclopédia da Vida que é o Google. Será que inventei? Será mito urbano, tão mito tão mito que só existe na minha cabeça?

Talvez. Ou talvez não esteja a procurar no sítio certo. Ou se calhar foi alguém que disse uma piada e a minha cabeça transformou aquilo numa confusão entre Chipre e Portugal. Ou talvez tenha sido outra coisa qualquer.

Enfim, será que algum dos meus atentos leitores consegue encontrar a referência a esta história? Ou fiquei mesmo maluco de todo?

Lembrei-me eu desta história (real ou inventada) porque há uns dias calhou-me a mim fazer uma confusão parecida. Não confundi Chipre com Portugal, mas fiquei uns segundos sem saber se estava a olhar para a Grécia ou para Portugal.

Como é que isso aconteceu? Bem, comecemos pelo início. Uma das metamorfoses mais esquisitas do casal típico português a marinar no calor do sul de Espanha é sentar-se ao fim do dia a ver misteriosos canais de televisão nos minutos de descanso entre passeios, praia e comida. Que canais? Onde estava, os canais eram ingleses. Tinha de tudo: desde escoceses a falar em gaélico na BBC Alba até canais espanhóis só para ingleses.

E o certo é que os canais ingleses têm programas que não lembram a ninguém. Por exemplo, no meio do nosso desesperado zapping à procura de alguma coisa que se visse, encontrámos um programa em que a apresentadora acompanha casais britânicos nas visitas a casas no Sul da Europa, para depois decidirem que casa vão comprar. Não é nenhum Querido, Mudei a Casa!, nem há qualquer tipo de concurso ou suspense. Não: vêem casas e decidem qual preferem. Uma emoção de deixar os nervos em franja!

Bem, a coisa durou uns minutos. Depois fui fazer coisas mais interessantes.

Mas nos primeiros segundos em que estive a ver esse tal programa aconteceu-me isto: olhava para a paisagem, olhava para a rua, olhava para a casa que os ingleses estavam a visitar — e não sabia se aquilo era ou não era em Portugal! Sim, podia perfeitamente ser uma casa no meio duma serra algarvia, com o mar ao fundo. A rua, a casa, a luz, a paisagem… Podia jurar que era o Algarve.

Mas, não. Era a Grécia. E logo que a apresentadora disse «Grécia» a ilusão desfez-se e lá comecei a ver aqueles pormenores que distinguem, de forma rápida, os países: os hábitos de construção, a forma de encostar as motas à parede das casas, etc., etc.

Porque vos conto este episódio tão banal? Não quero exagerar, mas há aqui uma lição para a vida (ah pois é!). Reparem: eu seria incapaz de dizer que aquela paisagem era portuguesa se soubesse de antemão que era na Grécia. E no momento em que soube que era a Grécia, pus de imediato, sem querer, os óculos gregos e já tudo me parecia tipicamente helénico. Qual Algarve qual carapuça!

Ora, não será que, quando sabemos que estamos a olhar para uma paisagem de determinado país, já olhamos com atenção inconsciente para tudo o que associamos a esse país?

Talvez assim se explique a estranha cegueira que temos em relação às diferenças internas dos países que visitamos — e ainda a forma exagerada como notamos aquilo que é diferente em relação ao nosso (e quase nem notamos que há tanta coisa que até é parecida).

Quando passamos a fronteira, sabemos que estamos a entrar num determinado país e reparamos naquilo que confirma a nossa imagem desse país. Vá: passem lá a fronteira mais próxima. Ponham-se num carro e sigam para Espanha. Passem a fronteira em Tui ou em Ayamonte, o que vemos passará a ser bem espanhol — embora a Galiza e a Andaluzia sejam tão diferentes como… (Será que me arrisco a exagerar?) … como a Grécia e Portugal.

(A coisa é tão forte, mas tão forte que há portugueses que juram que foram a «Tuy» e nem reparam que afinal foram a «Tui». Adiante.)

Olhando para a nossa querida raia, a verdade é que o nosso cérebro faz estas duas coisas: tudo o que está para lá da fronteira parece-nos típico de Espanha (reparamos no que é saliente, ou seja, no que é típico) e, mais do que típico, parece-nos uniforme. E mais ainda: parece-nos diferente do que vemos no nosso país.

Se passarmos muito tempo nesse país, lá começamos a ver tudo com outros olhos. As diferenças começam a ser menos salientes. Habituamos. Entranhamo-nos. Mas quando voltamos de férias, lá volta em força a imagem simplificada do país onde fomos.

Esta é uma das muitas declinações duma armadilha que temos no cérebro: a tendência de confirmação. O assunto é interessante (acreditem!) — tendemos todos a confirmar aquilo em que acreditamos. Reparamos e usamos tudo o que confirma as nossas ideias e damos muito menos valor ou consideramos como excepção tudo aquilo que não confirma as nossas ideias. Alguém acha que os espanhóis são arrogantes? Se encontrar um espanhol humilde dirá: «Que senhor tão simpático! Nem parece espanhol!» Se encontrar um espanhol arrogante dirá: «Os espanhóis são cá uns arrogantes!»

Assim se explicam muitas teorias da conspiração, muitos preconceitos — e até o terrorismo (mas isso fica para outro dia). E também será uma das razões por que é tão difícil a muitos portugueses ouvirem as outras línguas de Espanha. Mas sobre isso tenho falado muito por aqui, deixemos para outro dia.

Agora vou mas é voltar para o trabalho, que as férias já se foram…

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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