Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

O meu estranho cérebro confunde «tomar banho» com «tomar café»

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Não sei se devia contar isto…

Bem, que se lixe. Vou contar.

Há muitos anos, andava ainda na faculdade, telefonei a uma amiga minha com quem queria falar e perguntei-lhe se… queria tomar banho!

Ficámos os dois em silêncio e ela lá disse: «Desculpa?…»

Fiquei envergonhadíssimo, pedi mil desculpas e enfrentei com coragem as risadas sinceras da minha amiga.

Juro que não era nenhum convite disfarçado de engano (vulgo «atirar o barro à parede»). Foi mesmo um qualquer curto-circuito da minha cabeça.

E tanto é assim que, meses depois, cheguei-me a um grupo de amigos, na faculdade, e perguntei alto e bom som: «Querem ir tomar banho?» Todos ao molho!

O riso foi geral.

Comecei a ficar preocupado: que estranha ligação era esta, na minha cabeça, entre «banho» e «café»?

Tenho algumas teorias. Talvez tudo tenha a ver com o verbo «tomar», que estará arrumado numa gaveta com o «banho» e o «café» e, quando abro a gaveta, sai o que estiver mais à mão. Talvez. Não sei.

Anos depois, as confusões momentâneas começaram a ser mais estranhas. Há uns cinco anos, tive uns meses em que confundia palavras sem qualquer relação possível ou imaginável.

Começou quando disse à minha mulher que tinha havido um acidente na telenovela (ou seja, na auto-estrada).

Dias depois, disse-lhe que uma amiga nossa mandara uma mensagem a combinar um café no Subsídio de Férias.

Ela ficou a olhar para mim com cara preocupada e, segundos depois, lá me caiu a moeda e expliquei que o Subsídio de Férias, dentro da minha cabeça, é o Cais do Sodré.

Essa tendência para a troca de palavras por outras sem qualquer relação lá amainou.

No entanto, de vez em quando, lá me acontecem uns novos incidentes.

Há uns dias, aconteceu-me um destes lapsos de língua, mas com as mãos.

Costumo estacionar o meu carro em três estacionamentos diferentes: em casa, no escritório da empresa de tradução onde trabalho e na faculdade onde dou aulas. São três estacionamentos bem diferentes, e em nenhum momento me passa pela cabeça confundi-los.

Pois bem, quando ia a subir o estacionamento da faculdade, que não tem portão fechado, peguei no comando da garagem de casa e comecei a carregar furiosamente, para poder sair. Com o portão aberto à minha frente. Não sei se o meu cérebro pensou que o comando iria parar o trânsito da Avenida de Berna, mas sei que fiquei muito envergonhado — e não estava ninguém a ver.

Porque estou a falar disto tudo?

A nossa cabeça tem razões que a própria cabeça desconhece. Os neurónios são bichos estranhos e o cérebro é, pelo que dizem, o mais complexo objecto alguma vez encontrado em todo o universo conhecido (pelo menos até encontrarmos os míticos marcianos de grandes cabeças, onde se esconderão cérebros tão complexos que nos deixarão ao nível da pequena formiga).

Bem, toda esta história e todas estas confissões para chegar a uma conclusão muito simples: o nosso cérebro é muito falível. E muito mais falível do que parece pelos exemplos que dei acima: há erros muito mais graves que todos fazemos e, nalguns casos, nem reparamos (e, por isso, não podemos contá-los num blogue).

Ao contrário do que se possa pensar, todas as profissões usam o cérebro. Das mais intelectuais às mais físicas, não há profissão que possa ser exercida por quem não usa o órgão mais complexo do nosso corpo.

Mas, obviamente, há profissões que puxam mais pelo motor intelectual do que outras. As várias profissões da área da tradução são um exemplo: tradutores, gestores de projecto, revisores, terminólogos, etc.

Os tradutores precisam de puxar especialmente pelo cérebro, uma máquina que é muito mais do que uma máquina, um músculo que consome muito mais energia do que qualquer outro órgão do corpo humano, um milagre da evolução natural que nos deixa com capacidade para tanto e, mesmo assim, é tão, mas tão limitado quando está cansado ou não está para aí virado. Temos de o conhecer para trabalhar bem. Temos de o ter bem descansado e bem treinado — se queremos trabalhar bem com as palavras.

Mas, acima de tudo — e este post que já vai longo resume-se a isto — temos de perceber que o nosso cérebro falha e adaptar os nossos procedimentos a esse facto que tantos ignoram. Ou melhor: tantos ignoram no que toca ao seu próprio cérebro.

Há uma tendência muito marcada no nosso cérebro para ignorar ou desculpar os erros próprios (que, por vezes, nem são considerados erros) e para encontrar e sublinhar os erros dos outros.

Na área da tradução, conseguimos aproveitar este facto da vida em benefício dos nossos clientes quando conseguimos ter duas pessoas a olhar para o mesmo texto.

Quando estamos a falar de tradutores individuais, é preciso ter muita força de vontade e contrariar assumidamente essa tendência do nosso cérebro para ignorar os nossos erros — se queremos conseguir rever em condições os textos que traduzimos. (Aliás, o mesmo se aplica aos textos que escrevemos.)

Se alguém estiver convencido que nunca se engana e raramente tem dúvidas, mais facilmente irá cair em erros e não saberá aproveitar a sabedoria da dúvida.

Por fim (prometo que deixo o vosso cérebro descansar logo a seguir): temos de perceber que o nosso cérebro não evoluiu dentro dum escritório ou virado para o computador durante horas a fio e por isso há cuidados especiais a ter por quem se vê nessa situação. Porque, senão, o cérebro revolta-se quando menos esperamos. Também disso espero conseguir falar neste blogue nos próximos tempos.

Nós não somos máquinas infalíveis: somos um animal com um cérebro sobredimensionado, que usou essa característica (que o distingue dos outros seres vivos) para chegar muito longe, mas que por vezes não consegue deixar de cair na tentação de se achar mais perfeito e infalível do que, de facto, é.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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3 comentários
  • À primeira vista, isto é, seguindo a intuição que primeiro se chegou à frente, eu diria que o Marco tem alguma coisa de disléxico. Não se assuste: a dislexia costuma atingir indivíduos de inteligência acima da média. É até, parece, o preço a pagar por ela… Só não sei é se isto o anima. 😉

    • Não me assusto, não. 🙂 Se não me engano, alguém disse exactamente o mesmo aos meus pais quando andava eu na Primária, mas também lhes disse para não se preocuparem, que a tal possível dislexia não me traria dissabores. Pessoalmente, tirando os casos que relatei e uma grande dificuldade em dizer o nome “Argélia” (digo muitas vezes “Algéria”), não a noto.

      • Cara, eu também sinto o mesmo em algumas situações.Só comecei a perceber este meu defeito depois que entrei na universidade, mas quando eu era mais novo eu tbm tinha uns probleminhas de trocar palavras aleatoriamente.
        Por exemplo, acredite, eu confundo muito “esquerda” com “direita”. Acredito que por eu ser canhoto, vivendo no mundo dos destros, eu acabei por ter uma dificuldade de pensar instantaneamente sobre as direções; por isto, preciso parar e pensar com calma pra não confundir.
        Também sempre tive problemas com “almoçar” e “jantar”. Não sei qual o meu problema. Mas isto ocorre de vez em quando com outras coisas, as palavras que eu sequer pensei tomam o lugar de outras que eu queria falar.
        PS: não tenho problemas de fala, leitura e tive muito contato com gramática e leitura. Entretanto, vivi num contexto onde pessoas em geral falavam muito errado (palavras com pronúncia equivocada e termos errados gramaticalmente) e sempre tive uma briga interna entre o contexto e meu conhecimento “ortogramatical”. Talvez isto seja outro motivo da confusão. rsrs

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Marco Neves

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