A culpa não é minha: os livros é que se atropelaram um ao outro… Poucas semanas depois do lançamento do Dicionário, temos o lançamento do livro anterior, que ficou à espera do dia certo. E o dia certo é segunda-feira, 10 de Dezembro, às 18h, na Biblioteca Palácio Galveias. Será apresentado por António Lobo Antunes e Maria Fernanda de Abreu. Aqui ficam, para aguçar o apetite, algumas páginas do livro – e o convite.
Crime na Aldeia
São Romão. Cercal Novo. Gafeira. Casa da Vereda. Aldeias ou espaços fechados em que a acção dos primeiros romances de José Cardoso Pires[1] se encerra ou se concentra em grande parte. E acrescentaríamos outros dois: Lisboa e Portugal – outros dois espaços fechados, uma «cidade à medida da aldeia» (O Anjo Ancorado: 11) e um país que é «um segredo bem guardado» («Europe’s Best Kept Secret», Balada da Praia dos Cães: 7).
Ora, o que acontece nestes espaços fechados que mereça ser contado? Em O Anjo Ancorado e O Hóspede de Job, a acção é mínima ou demasiado dispersa para o «leitor distraído» de que fala Torres (1977: 153). Ao leitor habituado a livros com enredos enleados, acções variadas e técnicas convencionais de contar uma história, estes dois romances parecem despidos, despojados de acção, onde, chegados ao fim, parece que as personagens estão no mesmo sítio de onde partiram, parece que nada mudou ou mudou muito pouco. Em O Delfim, o leitor fica desconcertado: há um crime, é certo, mas não se compreende realmente o que se passou – este é um romance em que o objectivo é, «sobretudo, contar o modo como a história se conta, ou melhor, o modo como a história se revela, e, ao revelar-se, se oculta […]» (Coelho 1999: 12). Mesmo em Balada da Praia dos Cães, onde as convenções do policial parecem prometer uma acção mais consentânea com o desejo de excitação rápida de cada leitor, o autor prega uma rasteira e leva o leitor mais fundo do que ele, porventura, quereria ir – uma armadilha, um jogo, uma caça: é disso que se trata.
O leitor fica perdido, porque as suas expectativas não são cumpridas. O narrador afasta-se da narração – o narrador dos romances cardosianos é uma criatura fugidia e misteriosa. Mesmo em O Delfim, romance de narrador homodiegético, o narrador não se mostra especialmente complacente para com os hábitos de facilidade do leitor. O narrador não guia o leitor nesta terra incognita que é o espaço romanesco de José Cardoso Pires. Assim, o leitor – mesmo que à primeira vista julgue não ver nada porque está habituado a que lhe digam tudo – vê-se obrigado a pensar, a repensar e a ver por si: como se os romances fossem um filme sem narrador e sem guião (a impressão é enganadora – há sempre um guião[2]). O leitor tem de reaprender a ler quando enfrenta José Cardoso Pires.
Em O Anjo Ancorado, o «automóvel aberto, rápido como o pensamento» (p. 11), que atravessa São Romão é uma «chama de rastilho a romper no asfalto» (p. 11) que, no final do romance, desaparece como «uma sombra a correr atrás de dois focos malditos de luz» (p. 108). Terá mudado alguma coisa em São Romão ou no casal que passa a tarde ao pé da falésia? O rastilho a que se compara o carro no início não provoca, aparentemente, qualquer explosão.
Em O Hóspede de Job, perante a desolação de um cenário onde as personagens são hóspedes malditos numa terra maninha, questionamo-nos se algo aconteceu no final, no país cujo tempo continua ao mesmo ritmo («O relógio da praça bateu o meio-dia. / Uma sentinela gritou às armas…», p. 155), se o país (Job) visitado por Gallagher (hóspede) avançou algum passo na marcha de fome e miséria onde se mantém.
Em O Delfim, o crime passa e a lagoa continua impenetrável após a pequena agitação provocada pelos acontecimentos misteriosos da Casa da Lagoa («chegam mais barcos, fazendo círculo, e em tudo isto há um não sei quê de cerimónia», p. 261). Quando o autor volta à Gafeira, instala-se no mesmo quarto («precisamente no mesmo quarto», p. 36) e vê a mesma paisagem, o mesmo largo e, ao fundo, os vestígios da mesma lagoa parada, ou seja, instala-se no mesmo tempo e no mesmo espaço de onde saíra um ano antes: o círculo fechara-se, voltara a névoa e «o sono, o sono» (p. 264), sentimento próprio de um tempo parado, simbolizado pela lagartixa na pedra. O autor fica à espera de novas manhãs e de outra leitura, não a «palavra veneranda de um certo abade» (p. 36), mas uma «que não traga a lagartixa na portada como um ex-líbris» (p. 264).
Os acontecimentos de uma outra casa, desta vez a Casa da Vereda, parecem também não fazer mossa no regime e no país, em Balada da Praia dos Cães. O crime também passa e os culpados, na realidade, parecem ter ajudado o regime a conservar o tempo parado (o tempo da lagartixa de O Delfim). O país continua a ser «Europe’s Best Kept Secret», a lagoa e a Gafeira continuam em silêncio.
Já em Alexandra Alpha, a explosão final simboliza a anulação das mudanças conseguidas pelas personagens. O país, no final do romance, não parece assim tão diferente daquele que encontráramos na primeira parte.
Pouco parece mudar nestes romances. Por vezes, parece que nada se passa. A acção resume-se ao aparecimento de elementos ou acontecimentos que, uma vez consumados, não parecem deixar rasto ou sequer alterar a realidade. O carro vermelho passa, o hóspede parte, o caçador volta à mesma Gafeira todos os anos, o regime mantém-se impassível perante insurreições que se anulam a si mesmas. Temos um tempo em círculo, que volta ao mesmo local após pequenos fogos-fátuos que desaparecem (o carro, o crime, o hóspede). Quando Elias, no final de Balada da Praia dos Cães, passeia por Lisboa, vê tratadores enjaulados que «pareciam vaguear sem destino» (p. 229). Repare-se: pareciam. Nestas obras, nada acontece – aparentemente. Como diz Antonio Tabucchi (1996: 4): «Na realidade, tudo acontece.»
Mas acontece o quê? Que quer o autor mostrar ao seu leitor? Comecemos a investigar este outro crime, começando a investigar as pistas que nos são fornecidas (os textos), para lavrar uma sentença possível.
[1] O Anjo Ancorado, O Hóspede de Job, O Delfim e Balada da Praia dos Cães, respectivamente.
[2] Esta linguagem cinematográfica tem propósito em relação à obra de José Cardoso Pires: já Lepecki (1977) estuda a relação entre as obras de Cardoso Pires e a Sétima Arte.
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