Às vezes, lá caio no erro de entrar em discussões absurdas no Facebook. Há dias, foi a tal questão do «Netuno/Neptuno». No debate, que começou porque alguém chamou os brasileiros de analfabetos por usarem a palavra «Netuno», havia quem insistisse que os brasileiros têm de usar uma língua igualzinha à nossa ou, então, não lhe podem chamar português.
Tentei argumentar que, para a discussão que estávamos a ter («será que dizer “Netuno” no Brasil está errado?»), o nome até nem é assim tão importante: «Netuno» é o nome do planeta no Brasil, chame-se à língua dos brasileiros o que se quiser. Usar «Netuno», no Brasil, não é sinal de analfabetismo: é sinal de que se sabe escrever.
Mas nem é preciso dizer isso. Uma das participantes bem informadas deu o exemplo do inglês: o inglês americano e o inglês britânico têm muitas diferenças e não passa pela cabeça dos ingleses exigir aos americanos que mudem o nome à língua que falam.
Resposta?
ohhh pá o inglês escreve-se igual em toda a parte do mundo
Ora, perante um argumento tão mal informado, o que dizer?
Enfim, dizer a verdade: o inglês de Inglaterra e o inglês dos EUA têm muitas diferenças. Há palavras diferentes, ortografia diferente e até a gramática tem algumas particularidades dum lado e doutro.
Aprende-se isto logo no primeiro ano em que se dá inglês na escola.
Mas como, naquela discussão, esse facto conhecidíssimo não dava jeito ao campo anti-brasileiros-que-escrevem-como-brasileiros, aqueles que defendiam que «Netuno» é um disparate passaram a defender com unhas e dentes que o inglês americano é igualzinho ao britânico.
A certa altura, a senhora que estava a afirmar, muito sobranceira, que o inglês é igual em todo o lado publica uma ligação para uma página que diz o contrário, com listas de diferenças e tudo. Reparem na frase assassina logo de início, a chamar ignorantes os pobres coitados que sabem que o inglês tem uma versão inglesa e outra americana:
para aqueles que sabem inglês
Porquê publicar uma ligação que estava contra a sua própria posição? Não sei bem, mas diria que a senhora estava, em bom inglês, muito «clueless».
Depois de ler a tal página apresentada pela senhora, presumo que tudo teria a ver com isto: há por lá uma frase que diz que algumas pessoas no Reino Unido, Canadá e noutros países usavam «centre» e «center» com dois significados diferentes. Uma nota muito secundária e pouco relevante, diga-se. Ora, a senhora, cheia de indignação cega, achou que essa frase era suficiente para provar que o inglês é, agora, igual em todo o lado.
Alguém que me acompanhava no debate, afirmando o que é óbvio (o inglês não é igual é todo o lado) disse a seguinte frase: «Então, mas essa ligação vai de encontro ao que eu estava a dizer!»
Pois, um dos participantes que estava contra nós naquela inusitada discussão argumentou com a seguinte frase assassina: «”De encontro” quer dizer “em oposição”. Está a dar-nos razão?»
Suspirei com tristeza.
A discussão, claro, morreu ali. Quem levou com aquela correcção despropositada achou por bem não se meter mais naquela contenda com pessoas claramente mal-informadas e que não se importavam de usar golpes baixos — foi-se embora e fez muito bem.
Quem corrigiu o erro «de encontro a» pegou num possível lapso momentâneo (confundir «de encontro» com «ao encontro») para chamar a outra pessoa de estúpida, sem que o erro tivesse qualquer relação com o assunto em discussão.
A pessoa em questão não parecia nada estúpida. Diga-se de passagem que todos os seus comentários estavam muito bem escritos. Apontar o dedo àquele «de encontro a» foi mesmo uma mesquinhice: uma forma de tentar ganhar o debate depois de ver que os seus argumentos estavam errados. Foi, muito simplesmente, batota.
Já por aqui discuti quando e como devemos corrigir o português dos outros: nem sempre é claro nem fácil perceber quais as regras de etiqueta dessas correcções.
Pois aqui temos uma situação claríssima em que não devemos corrigir os erros dos outros: quando estamos a discutir um assunto qualquer e os outros que dão os erros são os nossos adversários de ocasião.
Chamar a atenção para as falhas de português dos nossos adversários é a definição mesma de golpe baixo. Se alguém está genuinamente preocupado com o erro, faça a correcção por mensagem privada e concentre-se, no debate público, naquilo que está em discussão.
Ora, alguns dirão: para quê perder tanto tempo com estas discussões sem futuro? Pois, também penso o mesmo. Mas, enfim, às vezes a tentação é forte. E, de qualquer forma, o diálogo que descrevi acima serve de exemplo concreto de dois grandes erros de quem anda a navegar pela internet:
- Primeiro erro: quando estamos em modo de discussão no Facebook, tendemos a procurar o que confirma aquilo que estamos a defender e não nos damos ao trabalho de investigar de forma minimamente isenta. Este caso que relatei é um caso extremo: bastava cinco minutos de investigação (ou até uma simples pergunta a um aluno de 5.º ano de inglês) para saber que o inglês não é igual em todo o mundo. Pois, aquilo a que a pessoa se agarrou foi a uma interpretação errada duma frase vaga e muito secundária num texto que, todo ele, dizia o contrário daquilo que essa pessoa estava a defender. É um caso extremo, mas vemos a mesma técnica em muitas outras discussões no Facebook (e fora dele): é a técnica que consiste em procurar qualquer coisa que confirme o que dizemos e ignorar tudo o resto. O que interessa não é chegar a conclusões sólidas, mas antes ganhar a discussão, por mais banal que seja. É assim que se perpetuam erros por anos e anos… Chama-se a este erro «tendência de confirmação».
- Segundo erro: por vezes, não resistimos à tentação de usar os erros de português dos outros para ganhar uma discussão que nada tem a ver com esses erros específicos. É exactamente o mesmo de estar a debater um assunto sério e, de repente, apontar para uma nódoa da camisa do adversário em tom de gozo. É apontar erros à bruta. Chama-se a este erro «falta de educação».
http://mashable.com/2016/04/15/grammar-obsessed-personality-study/?utm_cid=mash-com-fb-main-link#9.rudUTASPqk
“Pois, um dos participantes que estava contra nós naquela inusitada discussão argumentou com a seguinte frase assassina: «”De encontro” quer dizer “em oposição”. Está a dar-nos razão?»”
Não dá pra vencer, Marco, não dá pra vencer…
Adorei o post!parabéns