Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

De Espanha, bons ventos e bons livros

Os portugueses lêem poucos livros espanhóis. Pronto, dizem-me já os pessimistas do costume: os portugueses não lêem, ponto final.

Reformulo: os portugueses que lêem lêem poucos livros espanhóis. Ficou uma frase abstrusa, mas pelo menos mais verdadeira.

Ficam já a saber que nisto de os portugueses lerem poucos livros espanhóis, quem fica a perder são os portugueses…

Querem um exemplo? O livro Anatomía de un instante, de Javier Cercas (em português:Anatomia de um Instante, editado pela Dom Quixote).

O livro, como explica o autor, apareceu-lhe como única opção depois de investigar os eventos de 23 de Fevereiro de 1981 com o objectivo de escrever um romance. Essa foi a data do último golpe de Estado da Europa Ocidental, felizmente abortado. O autor investigou os eventos e chegou a esta conclusão: só um livro de história poderia fazer jus a uma história que é ela própria um romance.

A narrativa centra-se no instante em que Tejero entra pelo Congresso dos Deputados de arma na mão e os deputados, compreensivelmente, baixam-se todos.

Todos, excepto dois [ver nota*]: Adolfo Suárez e Santiago Carrillo, sentados nos extremos opostos do hemiciclo, o primeiro o representante final do franquismo, e o segundo o líder do Partido Comunista Espanhol. Vejam bem a capa da edição espanhola, abaixo. Aí têm Suárez impávido, perante um golpe de Estado. Isto tudo gravado pelas câmaras da TVE!

A partir dessa coragem exemplar dos dois políticos dos extremos, segue-se uma viagem pela vida dos dois homens e pela vida de Espanha das décadas que antecederam a Transição e de tudo o que aconteceu nesse período apaixonante.

Vemos como ambos tiveram de abdicar de muito do que eram para conseguir esse prodígio: uma Espanha que se tornou uma democracia desenvolvida sem sobressaltos de maior, poucas décadas depois duma Guerra Civil que pôs os avós desta geração de políticos uns contra os outros — até à morte.

Para conseguir isto, foi necessário fazer cedências dolorosas: Suárez abdica das ideias franquistas e Carrillo abdica da nostalgia pela República perdedora da Guerra Civil.

As cedências são mútuas, o resultado inesperado. Suárez legaliza o Partido Comunista, o que marca para lá de qualquer dúvida o fim do franquismo. Carrillo aceita a bandeira franquista como bandeira nacional. E estes são apenas dois exemplos. As acções destes extremistas acabaram por permitir a consolidação da democracia espanhola.

O resultado? Os partidos de ambos tornam-se irrelevantes em poucos anos — mas Espanha ficou, sem dúvida, a ganhar. Se querem lições de como pôr o interesse do país à frente do partido, aqui têm um exemplo bem concreto.

O livro é daqueles que não se consegue deixar de lado. E ninguém sai indiferente ao que lê aqui — muito menos os portugueses, que têm em Espanha uma caixinha de surpresas que poucos acabam por descobrir, iludidos que estão pela imagem simplista do são os nossos vizinhos.

Reparem em Adolfo Suárez sentado (Carrillo, nesta foto, não se vê) e nas costas dos outros deputados, agachados nas bancadas:

ANATOMIA

* Luis Alías Gijón e Francisco Belard chamaram-me a atenção para este facto que não me devia ter escapado: não foram apenas estes dois deputados, mas também o vice-presidente do governo, Gutiérrez Mellado, a ficar de pé. Fica feita a importante correcção, tanto mais que Gutiérrez Mellado teve a coragem de fazer frente de viva voz aos golpistas. Leia-se este artigo sobre o vice-presidente do Governo.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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2 comentários
  • Entre los valientes le falta un tercero, el hombre de espaldas que va contra los guardias civiles del fondo teniendo uno detrás, el antiguo general franquista Gutiérrez Mellado. En su condición de general, no dudó en levantarse y exigir que depusieran las armas de inmediato, y a pesar de tratarse de un anciano, dos guardias civiles trataron de reducirle por la fuerza: puede verse en la única cámara que funcionó clandestinamente.
    Por otra parte hay una diferencia esencial entre Santiago Carrillo (no Castillo) y Adolfo Suárez: el último (por edad) nunca mató a nadie. Santiago Carrillo fue eficaz colaborando en traer la democracia, pero miles de españoles, especialmente madrileños, padecieron tortura y terminaron cruelmente asesinados por orden suya, muchos sencillamente conservadores pero también republicanos, troskistas, anarquista, poumitas…
    En realidad constituyó para Orwell una inspiración de su Gran Hermano.
    ¿Que si soy franquista? La muerte de Franco la viví en la cárcel por propaganda subversiba como militante de la Liga Comunista Revolucionaria.
    He de añadir que también viví a Revoloçao dos Cravos y que Portugal significa una geografía familiar y propia, pero que no sólo en literatura, en historia, los hermanos siameses por la espalda siguen siempre… de espaldas.
    Cordialmente: Luis.

    • Caríssimo Luis: muito obrigado pelo comentário muito pertinente e importante. Agradeço (e agradeço também a correcção de “Castillo”). Cordialmente -Marco

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Marco Neves

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