No Facebook, encontrei quem se queixasse de ter ouvido um jornalista a dizer a curiosa expressão «o estádio está a desencher».
Por baixo do post, em muitos comentários, lá vinham as indignações habituais: não pode ser, isto agora é só ignorantes, essa palavra não existe, os jornalistas já não são o que eram — e por aí fora.
Confesso: nunca tinha ouvido tal verbo. Supus mesmo que o jornalista tivesse tido ali um assomo de criatividade e não deixei de sorrir. Mas, lá no meio dos comentários indignados, noto que alguém declarou a quem quis ouvir que lá na terra dela todos conheciam aquele verbo. Mais: teve o cuidado de ir ao dicionário — daqueles em papel e mais antigos — e encontrou o verbo «desencher».
Ou seja: a palavra existe. Sim, talvez seja do registo popular e já sabemos que há muitas pessoas incapazes de lidar com tais misturas, vá-se lá saber porquê. Também é verdade que o verbo é transitivo e fica a parecer que falta ali qualquer coisa. Agora o que o jornalista não fez foi inventar uma palavra nova… Usou uma palavra que aprendeu como todos aprendemos muitas palavras: entre amigos, colegas e familiares.
Perante isto, qual foi a resposta dos indignados? Uma ou outra pessoa lá aceitou que estava perante uma palavra que não conhecia e não era caso para tanta indignação. Mas outras continuaram imperturbáveis na sua fúria por terem sido expostas a uma palavra desconhecida. Mais: declararam a quem os quis ouvir que, se o dicionário tinha essa palavra que elas não conheciam, então o dicionário só podia estar errado! «Desencher»? Alguma vez…
Tenho pena, tenho genuína pena de quem anda a ouvir televisão e a ler textos com o dedo já em riste, pronto a apontá-lo, indignado, à primeira palavra que não conhece. O mundo deve ser triste para quem perdeu assim o gosto pela sua língua.
Sim conheço o verbo, pelo menos na Horta ele é usado, raramente, mas faz lembrar um pouco a escrita de Mia Couto… e esta talvez utilize uma variante linguista de Moçambique que não deixa de fazer parte da nossa língua falada quando não é apenas um neologismo do autor.
A indignação despudorada e mal educada deve criticar-se como a dos críticos que andam sempre de dedo em riste. Mas também é criticável a atitude do jornalista que usa o verbo popular/regional “desencher” em vez de esvaziar. Também encontramos em dicionários recentes o verbo *encertar (por encetar ou enxertar, não se sabe) que certas pessoas começaram a usar porque o ouviam na sua terra. Logo foi dicionarizado como regionalismo. Ora, é um termo que se ouve em certas regiões mas não deixa de estar errado. Agora não, pelos vistos, que já está no dicionário. Quanto à comparação do jornalista com certas frases de Mia Couto, podemos juntar-lhe Guimarães Rosa e Luandino Vieira. Mas isso é comparar literatura com mau jornalismo. Camilo Castelo-Branco também nos deixei muitos erros sintácticos em falas de personagens populares (e.g. Ferrador de Amor de Perdição), mas nem por isso passaram a ser aceites pela gramática. Estrada da Beira e beira da estrada não são sinónimos.
Obrigado pelo comentário! Se o texto ou discurso do jornalista estiver eivado de regionalismos a despropósito, parece-me haver fundamento para crítica. Agora o uso de uma palavra do registo popular, por si próprio, parece-me ser não só pouco criticável, como até sinal de bom uso da língua (por pouco provável que nos possa parecer). Mas teria de ver o texto completo, claro está. Não faço ideia se o discurso do jornalista era ou não adequado. Agora esta palavra em particular não me parece criticável só por si. Lembro-me sempre do uso humorístico do verbo “deslargar” num título duma notícia (faço ligação no texto a esse caso), que deu origem a tal tempestade que só posso concluir que há muito medo de palavras populares — palavras essas que dificilmente se avaliam como certas ou erradas (serão mais ou menos adequadas dependendo do texto, do tom, etc.). O querer à força eliminá-las de todos os textos escritos parece-me reduzir a língua a um do registo sem grandes vantagens. (E repare que estamos a falar de vocabulário, não de sintaxe.) Espero que não se importe assim tanto com misturas de registos, pois neste blogue vai encontrá-las em muitos textos… 🙂
Acho muito estranho o verbo ” desencher” vir no dicionário. Por acaso ainda tenho desses livros em papel, é uma ou duas enciclopédias… Não me dei ao trabalho de ir ver mas acho estranho porque o dicionário não contempla palavras derivadas . Essa tem um prefixo ” des”.
Sabemos que o antônimo de cheio é vazio . O verbos daí formados terão de acompanhar a raiz das palavras.
Não será crime de lesa magistrado um jornalista utilizar linguagem popular. Mas não deve!
A língua usada nos órgãos de Comunicação Social deve ser a língua corrente .
E não vamos ser tão bonzinhos e concordar com tudo…
Não fico, no entanto, furiosa quando tal não verifico. Apenas expectante!
Há várias palavras começadas por «des» nos dicionários. Ainda agora uma leitora me informou, no Facebook, ter encontrado esta mesma palavra no Pequeno Dicionário de Cândido de Figueiredo de 1924. Está nos dicionários — e há muito tempo… 🙂
Não duvidei , apenas me admirei .
Basta pesquisar aqui: http://www.dicionario-aberto.net/estaticos/about.html;
ou procurar neste PDF, pág. 616: http://www.dicionario-aberto.net/dict.pdf.
Desculpem alguns erros que o meu IPhone assume. Se não revejo , acontece isto… Quem conhece a língua , sabe onde estão , não vale a pena apresentar lista de correcção ????
Há dias a minha neta de 5 anos também me pediu para eu desencher o balão que tinha nas mãos. E eu lembrei-me que há uns quantos anos o pai dela também me pediu para eu despintar um desenho que ele tinha feito na parede .Se calhar o despintar também existe.
E existe mesmo.
Verifique: https://www.priberam.pt/dlpo/despintar
«Como aquela alma se ia atolando na lama que o remorso lhe desenchia da consciência», Camilo Castelo Branco in O Retrato de Ricardina, cap. 8.
O mais paradoxal nisto tudo é que as pessoas que mais encómios tecem à riqueza da língua portuguesa são as primeiras a torcer o nariz quando dão de caras com essa riqueza…
A mais pura das verdades, Manuel.
É impossível alguém achar estranho a palavre “desencher” constar no dicionário bem como desabafo, desamparo, desafivelar, desaparecer, desatar, desbaratar e o verbo tão usado pelos jovens brevemente irá constar também que é o descoisar. Enfim!!
“Descoisar” é uma excelente palavra, Ana! Talvez das que mais falta fazem na nossa língua.
A mais pura das verdades, Manuel.
Parece que o meu abcesso dentário já está a começar a desinchar, Manuel.