Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Dez palavras supimpas do meu filho

Tenho de pedir desculpa ao leitor: a verdade é que andei uns dias de férias, longe de notícias e polémicas, e assim não posso fazer mais do que falar um pouco das palavras em que fui reparando nas conversas que tive com o meu filho, enquanto brincávamos e enquanto ele tentava aprender a nadar — e não é que conseguiu? À nossa volta, crianças falavam em várias línguas, nessa vontade de conversar com que nascemos quase todos.

1. ADIANTAR. É um espanto. Já sabia que era assim — em teoria! Na prática, fico mesmo de boca aberta. As crianças por volta dos cinco anos já sabem alguns milhares de palavras, que aprendem a conversar e a ouvir. E usam-nas de forma curiosa, afinando os significados e, por vezes, esticando um pouco a corda, o que é delicioso e explica por que razão a língua nunca fica igual em cada geração que passa. Dou um exemplo: o Simão viu um descapotável a passar e ficou admirado com um carro tão estranho. Apontou, a rir-se, e disse algo como «se chovesse, aquele carro não adiantava nada!». Rimo-nos com aquilo, mas aquele uso de «adiantar» com o significado de «valer a pena» ou «servir para alguma coisa» é parte da nossa língua, mesmo sem repararmos — embora dificilmente usasse a palavra para me referir a um carro…

2. ALIÁS. Cada pessoa tem a sua língua, ou melhor, a sua maneira de falar a língua. Abusamos de certas palavras, esquecemo-nos de outras, não há ninguém que saiba e use exactamente as mesmas palavras que outra pessoa. A maneira como usamos a língua é tão nossa e tão própria como as impressões digitais — todos temos um estilo próprio. E, no caso do meu filho, já se percebe que gosta muito de usar a palavra «aliás». Porquê? Não sei e não interessa. Aliás, interessa-me, mas pouco posso fazer que não seja reparar na maneira como o português sai da boca dele. A língua é de todos, mas é também de cada um, que a mastiga de maneira diferente.

3. SUPIMPA. Há quem tenha algum medo de palavras brasileiras, mas qual é o problema quando são apetitosas? Na boca do meu filho aparece agora (vá-se lá saber por que caminhos veio) um belo «supimpa», que às vezes substitui o «fixe» na sua maneira de falar.

4. BUGAR. Aliás, não é só essa a palavra de sabor brasileiro que ele às vezes usa. Também lhe aparece nos lábios uma outra palavra que imagino vir do lado de lá do Atlântico — «bugar». Não digo o que significa para deixar uma comichão de dicionário nos dedos do leitor. Foi assim que aprendi que os filhos também ensinam palavras aos pais.

5. «DIGUEM». Não há criança que aprenda a falar sem experimentar e, ao experimentar, errar. Aliás, continuamos a fazer isso pela vida fora. Depois, o cérebro lá vai limando a língua, acertando as conjugações, arrumando os verbos regulares e irregulares na respectiva gaveta. O Simão começou por dizer «eles diguem» em vez de «eles dizem». Agora, já acerta — excepto na letra de uma música que andou a cantar durante o Verão. Na cabeça dele, o verbo ficou assim gravado naquela música. Nós corrigimos, mas quem nunca aprendeu uma música com palavras que não são bem assim no original?

6. MEDO. Por alguma razão que não sabemos, o Simão ganhou medo aos cães. Gosta de os ver, mas de longe. Perder o medo de cães foi uma missão destas férias como aprender a nadar — nadar já está, já o medo dos cães tem de ser devagarinho… Curiosamente, quando se aproxima, explica a si próprio: «é para perder o medo».

7. ESTRUME. Esta foi uma palavra que ele aprendeu durante as férias. Passámos ao lado dum campo e lá nos entrou nas narinas o cheiro a estrume. Ele perguntou o que era aquilo… Quando lhe explicámos de que era feito o estrume e para que servia, começou a rir-se às gargalhadas. Enfim, já sabemos que as crianças se riem com tudo o que envolva «cocó». Espero que a professora não se assuste se ele usar a palavra «estrume» para explicar como foram as férias…

8. SAUDADES. Quando as férias estavam a terminar, a mãe disse-lhe qualquer coisa do género: «Estás quase a poder matar saudades dos primos!» Ele riu-se com o «matar saudades». «Mas não sabes o que quer dizer?» «Sim, é perder as saudades.» Sabe o que significa, mas por algum motivo, naquele momento, o «matar» junto às «saudades» fez-lhe umas cócegas quaisquer na cabeça e ele riu-se. Pois ontem, quando por fim reencontrou os primos com quem costuma brincar todos os dias, mas que já não via há 15 dias, explicou-nos a sua peculiar matemática das saudades: «Já não via os primos há 15 dias; agora vou demorar 15 dias a matar as saudades.»

9. CONTAR. No meio das conversas, ele gosta muito de contar. Ficou maravilhado ao perceber o sistema das dezenas e das unidades. Às vezes, pede-me para contar até cem em vez de lhe contar uma história (só às vezes). E eu conto, maravilhado com o encanto dos números para esta criança, que vai adormecendo a sorrir e a repetir baixinho o que ouve, como se os números fossem um feitiço para perder o medo.

10. FESTINHAS. Na verdade, a expressão completa é: «festinhas doces». É uma daquelas expressões só nossas com um significado muito concreto. Quando ele diz que quer «festinhas doces», está a pedir que lhe passe os dedos pelo pescoço e pelas costas para adormecer. E adormece, depois de mais um dia de muita correria e muita conversa!

O meu filho não é especial nisto. As crianças aprendem palavras com uma facilidade que me deixa de boca aberta. Aos seis anos, usam activamente alguns milhares de palavras e compreendem muitos mais. São palavras de todos os tipos: bonitas, feias, proibidas, complicadas, simples — e é assim que deve ser. Aliás, conversar com as crianças, apontar o mundo e continuar esta aventura de contar o que imaginamos e ouvir o que os outros têm para nos dizer só nos faz bem: a eles e a nós.

É um dos prazeres que não terminam, mesmo quando voltamos de férias.

Conversemos, pois — e bom Setembro!

(Crónica no Sapo 24.)

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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11 comentários
  • Boa tarde!
    Aqui no Alentejo se usa frequentemente o “não adianta” exactamente no sentido de não vale a pena. Aqui lhe deixo o relato de uma situação que conheço desde que me entendo como gente: no comboio Barreiro-Beja, um passageiro pediu a outro, que seguia sentado junto à janela, que fechasse a dita porque estava frio. Recebeu como resposta seca: não adianta. Inconformado, o primeiro pediu ao revisor que fechasse a janela. O revisor assim fez, mas todos verificaram que a janela afinal não tinha vidro. E logo o segundo passageiro sentenciou: eu não lhe disse que não adiantava?
    Saudações transtaganas.

  • Alguém se recorda da utilização – nas aldeias, pelo menos – e significado de “pramorde”, ou “adei”?? Ou “pivedas”, ou “angusto”, entre tantas outras? Fico curiosa e aguardo outras, bem como as respetivas explicações.

  • Achei muita graça à sua crónica e também gostei muito do entusiasmo e atenção que demonstra ter com os diálogos que mantêm com o Simão.
    Também senti a tal comichão de dicionário nos dedos e fui ver o que significava e cheguei à conclusão que a net ja me estava a bugar por estar a falhar muitas vezes.
    Quanto a vocabulários novos, penso que são sempre enriquecedores e acho que é esta abertura a palavras novas que torna a nossa língua viva.
    Agora uma curiosidade; sou caboverdiana e como tal, falo o criolo e posso-lhe garantir que não há dialeto ou língua com tanta facilidade para aumenar o seu vocabulário. O criolo é resultante de “retalhos ” de varias línguas, mas a prevalente
    é a portuguesa.
    Já agora uma dúvida, a minha filha formou-se em Literatura e na aula de linguística a professora disse que o dialeto criolo caboverdiano é considerado
    uma língua, sera?
    Boa tarde e bem-haja

  • Engraçado uma criança de cinco anos dizer supimpa. No Brasil já é há tempos obsoleta/obsolescente, pelo menos em SP. Tenho a impressão de que só quem tem acima de 70 anos ainda a emprega.

    Eu sou brasileiro e não conhecia bugar. Aprendi-a neste texto. Pensei no bug do inglês, o que foi confirmado na internet, onde vi como o vocábulo é usado. Mas verdade seja dita que há vários anos moro fora do país.

  • O significado de bugar ensinou-me outros termos que desconhecia.
    Bugar: falhar, travar, parar, dar pau, ter pane, dar tilt. Tilt?

  • Havendo crianças, é muito educativo e aliciante conversar com elas. Como diz um dos meus filhos, “não têm filtros”. Ou têm os dos outros, mas usam-nos de forma sua e genuína.

  • Marco Neves
    Entrei hoje no seu blog, que aprecio. Como aprecio esta atenção ao quotidiano no uso da língua.
    Permita-me um reparo amável. As crianças não têm milhares de palavras ao seu alcance. Se pensar que em LES MAINS SALES, Sartre usa apenas quatro mil palavras diferentes, concluirá que quatro mil são muitas palavras.
    Um falante comum raramente usa no seu vocabulário ativo quatro mil palavras e um falante conhecedor raramente ultrapassa sete mil e quinhentas.
    Quando surgiu o primeiro Big brother, depressa se concluiu que a pobreza do vocabulário usado nos deixava perplexos. Ao mesmo tempo surgiu o resultado de um estudo feito nos EUA a falantes ao telefone que concluiu que 150 palavras eram a base da comunicação e muitos não iam além delas.
    Com simpatia
    Lídia Martins

    • Cara Lídia, muito obrigado pelo comentário e amabilidade. Na verdade, os estudos linguísticos sobre aquisição do vocabulário detectam mesmo aproximadamente 4000 palavras no vocabulário habitual das crianças de cinco anos. No caso dos adultos, chega às 20000 (ou mais). A oralidade tende a usar um vocabulário mais extenso do que a escrita, por estranho que pareça. Mas mesmo na escrita, temos surpresas: David Crystal (linguista inglês), por exemplo, pegou num exemplar do The Sun (conhecido pelo seu vocabulário básico e directo) e encontrou 6000 lexemas diferentes. O nosso vocabulário é muito mais extenso do que nos parece. Há uns meses, fiz a experiência com textos deste blogue (não me parece que o vocabulário que use seja diferente do habitual) e encontrei mais de 10000 palavras diferentes… Espero que não se importe com a discordância, é saudável. 🙂 Estou na rua, mas tentarei dar-lhe indicações sobre os estudos relacionados com o vocabulário da infância logo que puder.

      • Obrigada pelas informações. Eu pensava que os tempos mudaram mas que o uso da língua se não tinha enriquecido. Assim sendo, estava errada.

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