Não sei se já ouviram falar duma pequena vila chamada Atouguia da Baleia. Uma pequena jóia de terra que, se não conhecem, deviam conhecer, nem que seja pelo osso de baleia gigante que se esconde dentro da Igreja Matriz.
A minha mãe é de lá e passei muito tempo, em pequeno, na casa dos meus avós. Foi lá que comecei a ler, embrenhado na colecção dos Cinco, da minha mãe, que li de enfiada aos 7 anos, numa pequena sala da casa dos meus avós cujo cheiro ainda hoje me traz recordações de felicidade absoluta e de aventuras com comboios, subterrâneos, ilhas desertas e comboios misteriosos.
Até aos meus sete anos, o meu avô era o gerente da loja principal da terra, um daqueles edifícios de fachada verde que aparecem nalgumas ruas de Portugal.
Lembro-me de brincar por lá, no meio de gigantescos armários de madeira, entre tudo o que se vendia na loja: arroz, farinha, cereais, etc. A loja chegou a ser a estação de correios e, a certa altura, tinha o único telefone da terra. As histórias que o meu avô conta davam um livro em que o século XX aparecia ali em pequena escala, entre a chegada da televisão, a chegada do Homem à Lua, emigração clandestina, agentes da PIDE e todos os pequenos e deliciosos enredos de todas as terras e de todos os tempos.
O meu avô reformou-se também por volta dos meus 7 anos e os proprietários da loja, uma família de Cascais, decidiram fechá-la.
Os meus avós Gisela e Manel, que não eram gente de ficar parada (alguém era?), abriram uma pequena papelaria num dos quartos da sua casa, que abriram para a rua.
A minha adolescência teve esse porto de abrigo (o outro era a mercearia da minha avó Leonor), com cheiro a jornais e livros, onde lia as aventuras do Tio Patinhas, mas também jornais e revistas sem limite, e ainda livros mais adultos. Lembro-me de ter comprado por lá os Contos de Eça de Queirós, que ainda hoje guardo, já meio desfeito, e ainda o meu primeiro livro de António Lobo Antunes: A Morte de Carlos Gardel.
Fiz ainda muitas colecções de fascículos, ajudado pelos meus avós: enciclopédias, atlas, discos de música clássica… Um mundo inteiro ali à mão de semear, numa pequena papelaria, numa rua calma duma terra pacata.
Conto-vos isto tudo porque faz hoje vinte anos que um homem entrou nessa pequena papelaria, na mais pacífica das vilas portuguesas, e matou a minha avó Gisela com um tiro na cabeça.
Não vale a pena entrar em pormenores. Foi um assalto, o homem foi preso e estará ainda a cumprir a pena.
Sei que é um lugar-comum dizer que aqueles que morrem não merecem. Pois, claro que a minha avó não merecia. E não merecia, acima de tudo, que fosse daquela forma violenta. A pessoa mais bondosa que conheci não merecia que a violência do mundo lhe entrasse por casa adentro.
Vinte anos depois, tento escrever este tempo para pôr algumas ideias em ordem e dizer-vos algumas coisas que aprendi e desaprendi nesse dia de 1995. Aprendi, como compreenderão, que perder alguém desta forma é um choque que não se explica. Mas aprendi mais…
O horror do acaso
Normalmente, tentamos integrar o que de mau nos acontece numa qualquer narrativa. Se morrem crianças numa escola dos EUA, a tragédia servirá, pelo menos, para chamar a atenção para a violência das armas de fogo nesse país. Se morre alguém de doença, servirá para incentivar a que se encontre uma cura… É um impulso normal: tentar dar um sentido à morte de alguém de quem gostamos.
Neste caso, não consegui encontrar sentido nenhum. Aquela morte serviu apenas para impedir que a minha avó conhecesse todos os netos e os visse crescer. Não foi sequer uma chamada de atenção para qualquer tipo de uma epidemia de violência: nos anos 90, os homicídios não estavam a subir em Portugal.
Não: foi um evento saído do caos da realidade, do horrível acaso que, por mais que tentemos negar, governa a nossa vida. Se o assassino não tivesse parado naquele sítio exacto, se não tivesse roubado aquela arma no dia anterior, se tivesse ficado preso como chegou a estar… E, claro, se aquela pessoa particular não fosse fraca ou má, a minha avó não teria morrido com violência. Teriam acontecido muitas outras coisas, boas e más, mas não aquela. Vivemos num mundo que mal compreendemos e é difícil não ter uma narrativa para nos ajudar nestes momentos.
Os sonhos são ainda piores do que os pesadelos
Quando a Teresa — que ajudava a tomar conta dos meus irmãos (e de mim, apesar de já ir com 15 anos) — me disse o que aconteceu, o meu corpo reagiu de forma absurda. Caiu-me um sono imenso em cima e tive de me deitar. Será que era uma tentativa de ver aquilo tudo como um pesadelo de que iria acordar?
Não só não era um pesadelo, mas sim a realidade bruta das coisas, como, com a morte da minha avó, descobri a maldição dos sonhos: quando adormecemos e de repente sonhamos que ainda vamos a tempo, que conseguimos voltar atrás e mudar o que já não tem solução. Sonhava muitas vezes que conseguia avisar a minha avó ou que alguém entrava e impedia o assassino ou que eu próprio a salvava de alguma maneira. Depois, acordava, e era um novo choque. Um choque repetido todas as manhãs, durante imenso tempo. É por isso que digo que os sonhos ainda conseguem ser piores do que os pesadelos.
Chorar não é assim tão fácil
Desses primeiros dias, lembro-me da dificuldade das pessoas em falar comigo e com os meus irmãos. Se com os adultos era difícil, o que dizer às crianças?
Lembro-me do abraço do meu avô quando me viu, num choro verdadeiramente desalmado.
Chorei muito e, algumas semanas depois, descobri que tinha deixado de conseguir chorar.
Fiquei preocupado, mas nada podia fazer. Fiquei sem lágrimas durante alguns anos, de tal forma que nas datas em que devíamos chorar, sentia-me envergonhado.
Não faço ideia do que se passou. Mas o nosso corpo tem razões que a cabeça não percebe, como sabemos.
Uma palavra proibida: «Obrigado!»
Agarramo-nos, nestas alturas, a certas ideias obsessivas e superstições absurdas.
Lembro-me de muitos pormenores dos dias que antecederam a morte da minha avó, como se tivessem ficado queimados pelo choque na minha memória. Talvez haja quem saiba explicar o fenómeno.
Lembro-me, por exemplo, do sítio exacto onde estava quando a rádio anunciou a morte de Yitzhak Rabin, poucos dias antes.
Lembro-me do último banho antes de saber o que acontecera.
Lembro-me, obviamente, da última vez que vi a minha avó, que nesse dia me deu um abraço muito grande, por uma razão qualquer. Também por uma razão qualquer, nesse dia, despedi-me dela com um obrigado, talvez por causa de alguma coisa que ela me tivesse oferecido da papelaria.
Ora, esse «obrigado» acabou por transformar-se, aos 15 anos, numa superstição. Deixei de dizer «obrigado» a pessoas da família, com medo que morressem.
Os livros podem agredir-nos sem querer
O acaso, o acaso sempre a torcer-nos o braço até doer. Nesse dia, o meu avô apontou, em choque, para um livro que recebera para vender poucos dias antes: Matai-vos Uns aos Outros, de Jorge Reis, que estava em lugar de destaque na papelaria, como ordem imperiosa a quem ali entrasse.
Não sei o que o meu avô pensou disso — nem sei se se lembra desse pormenor horrível. Talvez lhe tivesse parecido mais uma prova de como a violência do mundo nos entra em casa sem pedirmos.
O funeral. Uma terra inteira a caminhar em silêncio, os chapéus na mão, as palavras do padre, a chuva, a minha mãe de rastos, o meu tio como se estivesse noutro mundo, os irmãos da minha avó, o meu avô, todos a começar a lenta caminhada até uma vida normal.
Percebi também, por esses dias, como podem ser cruéis os rituais de todos os dias. Aquilo que, antes, fazíamos sem pensar, temos de aguentar agora com o peso do mundo aos ombros. Nem falo de mim, que aos 15 anos mal sabia o que são os dias normais.
Falo do meu avô, que logo no dia seguinte teve de voltar ao trabalho, porque a papelaria recebia apostas do Totoloto e não há nenhuma desculpa do mundo, nem a morte da mulher no dia anterior, para não entregar os boletins. Falo da minha mãe, que teve de voltar às aulas. Do meu tio, que teve de voltar ao trabalho.
Voltar à escola, o primeiro Natal, o julgamento, os aniversários, os primeiros nascimentos depois do que aconteceu e a vida a fingir-se normal, enquanto todos nós demorávamos tanto tempo, muito mais do que pensávemos, a deixar de pensar no que aconteceu, todas as horas do dia.
A morte é terrível para quem fica, claro. Quem vai, não sabe o que se passou. A morte dos nossos faz-nos mal. Aquele assassino não só matou a minha avó, como me ia estragando, de forma retroactiva, certas recordações de infância. Mas, claro, não conseguiu, porque a certa altura as memórias dos abraços ganham mais força do que da falta desses abraços nos anos que vieram depois. Será egoísmo pensar nas minhas memórias de infância neste ponto? Enfim, todo o amor é um pouco egoísta, até o dos netos pelos avós. Talvez principalmente o dos netos pelos avós. Queremos que aquelas pessoas que nos amam sem o ralhar dos pais fiquem connosco para sempre — e intuímos que não será assim. Custa mesmo muito quando descobrimos isso, de forma brutal, cedo demais.
Que nos valha a memória, esta capacidade incrível de nos lembrarmos dos abraços que demos — e, hoje, que me valham estas palavras com que lembro e comemoro a minha avó, que alguém matou num dia qualquer de Novembro e de quem tenho tantas saudades.
Depois de ler, gostaria de ter a palavra certa. Não está ao meu alcance. Permito-me apenas transmitir-lhe a emoção que o seu testemunho me causou e a identificação com muito do que partilhou – aqui, sim, com palavras certas e belas.
Texto muito belo, a recordar um instante dramático e a apontar o dedo acusador ao omnipresente “acaso” que também então senti como o elemento principal dessa tragédia desnecessária. À época visitava os avós, a D. Gisela e Sr. Manuel, que me faziam o favor de distribuir um folheto publicitário chamado “publifácil”, e que entregavam aos clientes que iam passando. Tudo tão estranho, como podia ter acontecido uma coisa estatisticamente impossível?! E não esqueci também a minha incapacidade para compreender a dor do Sr. Manuel, quando voltei na vez seguinte e o vi atrás do balcão que “pertencia por natureza” à D. Gisela…
Lembro muito bem desse dia… fui a ultima pessoa a ver a D. Gisela viva , uma das testemunhas que na altura tinha 19 anos .Também para mim foi um tormento que me acompanhou muito tempo ( tinha que adormecer com a luz de candeeiro acesa pois quando a apagava vinha-me a lembrança a imagem daquele que roubou a vida a uma pessoa muito querida da vila). O meu trauma durou muito tempo inclusive nunca mais consegui entrar na pequena papelaria e tentei varias vezes , mas sempre que me aproximava no cantinho as minhas pernas tremiam que nem varas verdes!!!
Texto muito belo. Queria tanto acreditar que essas palavras chegaram ao destino certo como uma carta de amor, intemporal. Gostaria de saber se essas palavras acalmaram a raiva que sentimos por uma morte assim- Não conheci a sua avó, mas passa nas suas palavras a sua bonomia, a sua benfazeja maneira de viver. E dobro-me em orações respeitosas sobre a sua alma. Obrigado pela comoção de ler esta herança.
Nunca soube disto… lamento a tua perda, mas só tu a poderias ter descrito de forma tão bela.
Fiquei sem palavras e com o rosto coberto de lágrimas.
Que bom ler este texto escrito por um filho, mesmo que o tema seja o dia mais triste da minha vida.
A tua avó esteve hoje (graças a ti) muito viva entre nós.
Ver o teu avô tão sensibilizado faz-me sentir um misto de sensações. Triste por recordarmos um dia que nos marcou para sempre com memórias impossíveis de esquecer, feliz por o ver agradado com tamanha homenagem onde ele próprio confirmou tanto do que ela encerra.
Obrigada Marco! Conseguiste fazer deste dia (vinte anos depois) um dia marcado por tantas emoções entre a família e amigos.
Obrigada filho!
Lindíssimo texto, que nos “toca” a todas e todos e nos ajuda a dar palavras para aquilo que não as pode ter.
Nós sim temos de dizê-lo: “Obrigado!”
Maravilhosa homenagem! A tua avo estara certamente, no ceu a escutar e a agradecer, com aquela bondade que todos nos conhecemos.
Pelo que descreves, tens que ser, um ser maravilhoso , como era a D. Gisela!
Beijinhos a toda a familia.
Um especial para ti Marco! Tocaste-me no coracao
Lamento dar-te (tratamento por ‘tu’ a um mero conhecimento da net) os parabéns por um texto tão bom mas de conteúdo tão triste.
São parabéns, não pelo que é descrito, mas sim pela forma com esse acontecimento marcante numa e em várias vidas, foi explanado em texto.
Não é fácil, falarmos dos nossos entrequeridos, mas o Marco fê-lo de uma forma que me fez recordar a minha infância com os meus saudosos avós maternos, também numa aldeia na Beira Alta. Hoje muito poucos falam da família e dos seus mais queridos, preocupam – se mais com os MSM no telemóvel, e com os programas de Tv. E como é do conhecimento geral, não têm qualquer qualidade. Obrigado, pela coragem que teve de nos dar a conhecer seu triste testemunho. Muita Força!
Marco, que bela homenagem!
A vida e as pessoas, ainda que possam já não estar – fisicamente – entre nós, é para ser celebrada. Sempre.
Na tua descrição sentida, revemos-nos todos nós, que passando pelo mesmo acontecimento, guardamos memórias, momentos, sentimentos e outras recordações, que só serão diferentes, porque as pessoas não são iguais umas às outras.
E sim, recordo-me perfeitamente de, durante uns bons dias, não conseguir chorar – ainda que quisesse – e como isso me incomodou. Estava como bem dizes, noutro Mundo. O choro parecia estar retido numa qualquer esperança de que nada daquilo fosse verdade e que, a tal vida normal não tardaria a voltar. Não voltou. Chorei então.
Tens razão, a tentativa de encontrar a normalidade, acabava por ser “atrasada” , pelas datas e pelas memórias. Com o tempo, e porque em maior quantidade, permanecem as lembranças das coisas boas desta tua Avó. Ainda bem.
E sim, a vida continua. Portanto não te “agradeço”. Bem-hajas!
Nuno
Telegrama
“Vem depressa tua mãe faleceu!”
… com o telégrafo inda vibrante,
Respondi numa linha só, aflante:
“Será melhor não ir… não sou plebeu.”
Que pensar tão pouco edificante,
Nesta crença estranha do plebeu,
Achar que pela morte se perdeu
Alguém que partiu de nós adiante!
Não quero ser um qualquer ateu,
Ao dizer-lhe adeus para sempre…
Ao ter do amor mágoa tamanha.
Prefiro ter n’alegria a façanha,
De tê-la viva nos sonhos sempre,
E sempre duvidoso se morreu…
Veiga Torres
Ao neto da avó Gisela
Em silêncio…
Embora triste a noite; por um momento
Entre recordações e ideias súbitas;
No silêncio das palavras não ditas,
Sopra um doce e suave pensamento.
Àquele a quem um dia a condição proibiu,
A alegria de ouvir o riso dos teus passos,
Chega agora envolta em divinos braços,
Quem de seus sonhos em silêncio partiu.
Num espelho etéreo de fina luz, se reflectiu
Simples lembranças em tão vivos pedaços,
Que achei ser sonho de verdade, os abraços,
A imensa emoção que este silêncio consentiu.
Encontrei-te assim: por um momento
Sem procurar nem esperar visitas,
No silêncio das palavras não ditas,
Num doce e suave pensamento.
Veiga Torres
Os avós lembram-nos a magia dos nossos tempos de infância e o aconchego ao longo da nossa juventude. Aquele abraço, sempre incondicional, carregado de memórias e lembranças, que alguns têm a felicidade de receber ainda em adultos não tem preço.
É uma perda irreparável, quando este ciclo é interrompido de uma forma tão brutal.
Abraço
Na sequência de uma pesquisa na internet, entrei no seu blogue e, pouco depois, neste texto. Quando li o título, questionei-me se seria em sentido figurado. A leitura esclareceu-me e arrepiou-me profundamente. Lamento e envio um abraço solidário desde Azeitão.
Não vi na altura em que escreveu. Li agora e comoveu-me profundamente. Pelas palavras sentidas, pela beleza e sensibilidade da descrição que nos coloca no lugar, na loja, entre os armários, na papelaria, a reparar em todas as estantes cheias e no entra-e-sai das pessoas, na violência do momento, no pesar e na dor da família.
Tina, muito obrigado! É importante para mim ler comentários como este. Beijinhos!
Estava escrevendo um texto ficcional sobre a tragédia tão real que aconteceu por esses dia em Nice, França – e que espantosamente tem acontecido, cada vez mais, pelo mundo à fora, em um terrorismo que vai além de qualquer tipo de explicação ideológica, religiosa, politica, econômica e social – quando me deparei com esse seu texto de profundo amor e dolorosas lembranças. E penso que, por mais que a ficção esteja baseada em fatos reais, nada se compara a quem de fato viveu e sentiu os acontecimentos narrados. Neste caso, a ficção só serve para fazer refletir sobre o que se passou em algum contexto, na esperança de atrair olhares, mas nada pode superar a realidade vivida. Abraço!
Sem palavras.
Um grande abraço.
Com uma descrição tão real, vivida, consegue colocar-nos nesse local que desconhecemos e que vivemos todos os passos dados: loja, avó, clientes entrando e saindo, dia trágico, cortejo fúnebre, tristeza da família e amigos……… tudo! Tão linda, apesar de triste, homenagem à avó, tão querida por todos que a conheciam! Vivi intensamente essa escrita! Parabéns por ser tão sensível e bom neto! <3 Obrigada! <3 Um abraço …….e de certeza que a avó está muito feliz por ter um neto assim! <3 <3 <3