Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Diz-se «atravessar a Mancha» ou «atravessar o Mancha»? (Sim, há quem erre nisto…)

O que se vê para lá da Mancha.
O que se vê para lá da Mancha.

Claro que todos dizemos «a Mancha». Dizemos «túnel da Mancha», «canal da Mancha», mas também, às vezes, apenas «a Mancha», como na frase «o homem atravessou a Mancha a nado».

Pois, acreditam que consegui encontrar alguém que está convencido que devemos dizer «atravessar o Mancha»? Justificação: estamos a falar do canal e, por isso, o nome próprio do canal tem de ser usado no masculino. Seguindo a mesma lógica, devíamos dizer «a Porto» por estarmos a falar duma cidade, «a Faial» por estarmos a falar duma ilha e por aí fora.

E acreditam que, mesmo depois de tudo bem explicado, com paciência que não sei onde fui encontrar para uma questão tão absurda, ainda fui insultado? Sim, o Facebook é um pântano. Tenho de aprender a conter-me.

Sim, este é daqueles disparates que nos deixam de boca aberta. Servirá de pouco descrever um incidente tão estranho. Mas trago-o para aqui porque é mais um bom exemplo de como é possível pegar numa lógica qualquer externa à língua, absolutamente aleatória, e começar a encontrar erros onde eles não existem. É o mesmo mecanismo que leva tanta gente a condenar a grande lista de erros falsos de que tenho falado por aqui: «fazer a barba», «queria um copo de água», «espaço de tempo», «saudades tuas», «pelos vistos», «o comer», etc.

E, claro, como é apanágio de muitas discussões linguísticas, quanto mais a posição de alguém se baseia em ignorância sobre como funciona a língua, mais arrogante e insultuosa é a forma como expressa a sua posição.

Neste caso, a pessoa que acredita piamente na correcção de «o Mancha» diz coisas como:

  • «E já agora, a notícia na parte de baixo está errada, é “o Mancha” e não “a Mancha”, pois refere-se ao canal. É cada jornalista mais burro…»
  • «Há gente que calada fazia melhor figura». (Isto depois de alguém dizer, educadamente, que «a Mancha» está correcto).
  • «ACORDA PARA A VIDA, atravessou o canal, canal é masculino e por isso é o Mancha.»

Depois de explicar tudo de forma demorada e responder a todos os argumentos, digo a quem acha que «a Mancha» está errado que percebo que não o consiga convencer (sei quando estou perante um muro) e que lamento que ele persista no erro de dizer «o Mancha». Resposta? «Tem a certeza que sou eu quem persiste no erro????» Apeteceu-me responder: tem toda a razão, vou passar a dizer que gosto muito da Porto, já atravessei o Mancha e gostava de visitar a Faial. Mas calei-me. Um muro é um muro.

Enfim, amanhã o meu interlocutor de ocasião continuará a dizer «atravessar o Mancha» e a insultar os outros. Como disse há uns dias, pior do que não saber (todos nós não sabemos muitas coisas) é insultar quem afinal até sabe (os falantes da língua, no seu conjunto, sabem bastante de português).

Há aqui uma irracionalidade linguística estranha, que não consigo explicar. Será tribalismo? («Este está contra mim, vou ignorar todos os seus argumentos.») Será uma ligação emocional a uma regra de português que é só dele? Será insegurança linguística? Será arrogância pura e dura? Não sei o que será. Mas sei que é qualquer coisa que, infelizmente, é mais comum do que parece e estraga muitas discussões sobre a língua.

Sim, os inventores de erros falsos andam por aí. Inventam uma regra qualquer e desatam a insultar os falantes de português, armados em defensores duma língua que despedaçam com regras erradas.


E, como estamos mesmo em cima do acontecimento, lembro que a partir de amanhã de manhã podem comprar o livro Doze Segredos da Língua Portuguesa nas livrarias de todo o país. No livro, falo muito destes erros falsos de português. Espero que gostem. (Na quinta-feira, teremos o lançamento do livro, na Bertrand Picoas, aberto a todos os interessados.)

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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