Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

E se um espanhol lhe disser que a sua comida é esquisita?

Os falsos amigos são das armadilhas de tradução mais conhecidas: são palavras que parecem fáceis de traduzir – e não são. Há muitas e boas listas de falsos amigos, em várias línguas. Hoje olho apenas para algumas palavras castelhanas que nos arreliam.

No caso do castelhano, existem muitos destes termos, com significado muito diferente do que parece à primeira vista — ou, o que é pior, com significado parecido, mas com alguma subtileza que faz toda a diferença.

Em castelhano, por exemplo, uma «ilusión» é um sonho ou uma sensação de esperança. Um futebolista português a jogar em Espanha que regresse ao nosso país a dizer que está cheio de ilusão não está a dizer que vê fantasmas: está apenas um pouco infectado pelo castelhano e a querer mostrar um grande entusiasmo com o que vem aí. Por outro lado, e para complicar um pouco, há contextos em que «ilusión» quer mesmo dizer «ilusão», como em «ilusiones ópticas».

Há muitas outras destas armadilhas: «inversión» pode ser «investimento»; «presupuesto» é, em textos económicos, «orçamento»… Já algo «raro», em castelhano, é algo estranho ou peculiar. Poderá ser raro (à portuguesa) ou não. Também poderá querer dizer «excepcional» (como na expressão «de rara perfección»). Por outro lado, a palavra «raramente» quer dizer o mesmo que em português. Ninguém disse que as línguas são lógicas…

Mas o mais traiçoeiro dos falsos amigos espanhóis é a palavra «apenas». «Apenas» quer dizer muitas coisas, muitas delas diferentes do «apenas» português ­— e às vezes até quer dizer exactamente a mesma coisa que o «apenas» português. Grande parte das vezes, significa algo parecido com «dificilmente» ou «quase não». A expressão «un libro que apenas se conoce en España» não se refere a um livro que  se conhece em Espanha, mas sim a um livro que mal se conhece em Espanha.

Há outro tipo de falsos amigos mais complicado. Por exemplo: se, num texto jornalístico espanhol, encontrarmos a expressão «Cámara de Barcelona», tenderemos a traduzi-la como «Câmara de Barcelona». E, de facto, estamos perante a Câmara de Barcelona… O problema é que não é a câmara em que os leitores portugueses pensarão. Se estivéssemos a falar da Câmara Municipal, teríamos, no original, «Ajuntament de Barcelona» (em catalão) ou «Ayuntamiento de Barcelona» (em castelhano). Se no original está «Cámara de Barcelona», na tradução, temos de explicitar que estamos perante a Câmara de Comércio de Barcelona.

E o que dizer de «Presidente de España», a forma abreviada como muitos jornais espanhóis se referem ao «Presidente del Gobierno»? Não podemos traduzir como «Presidente de Espanha», claro — ainda assustamos algum leitor desprevenido, que ficará convencido que houve uma revolução aqui ao lado…

Mas de todos os falsos amigos, o mais perigoso é sem dúvida o «exquisito», bem capaz de criar novos inimigos. Se alguma vez convidar um espanhol para jantar lá em casa e, no fim do jantar, ouvir dizer que a sua comida — ou a comida portuguesa em geral — é «exquisita», não se enerve. A palavra «exquisito» quer dizer, segundo o dicionário da Real Academia Española, «de singular y extraordinaria calidad, primor o gusto en su especie.» Está a receber um raro elogio!

(Crónica no Sapo 24.)

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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6 comentários
  • Muito interessante e útil! Já uma vez tentei explicar o “apenas” castelhano e tive dificuldades em fazê-lo. Assim percebe-se, obrigado. Só tive pena que não tivesse aparecido o “todavia” castelhano, que se traduz por ainda (não sei se sempre) e não por todavia. Não é?

  • Essa definição “falsos amigos “ seria a equivalente à que se usa no Brasil “falsos cognatos “ ? Muito usada aqui em aulas de inglês para alertar contra a tradução errada em palavras como “realize”, “deception” e outras .

    • Imagino que sim, mas o termo “falsos cognatos” é, ele próprio, falso. Muitas destas palavras são cognatos verdadeiros (têm a mesma origem), mas ganharam significados diferentes, acabando por ser falsos amigos. “Falsos cognatos” parece mais exacto (um termo mais “científico”), mas acaba por ser um erro.

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