Há uns tempos, deixei por aqui um artigo em que mostrava a ortografia usada na primeira edição d’Os Maias.
Há uns dias, partilhei este artigo no Facebook e acabei por dar de caras com este curiosíssimo comentário:
“Nós escrevemos muito melhor do que Eça… que se parece com pessoas que escrevem por aqui na Internet e me causam arrepios.”
Será que a autora do comentário acha mesmo que a ortografia queirosiana era uma forma errada de escrever? Imagino-a transportada para o século XIX, onde pacientemente explicaria ao Sr. Queirós que devia ir aprender a escrever.
Este comentário revela uma forma particularmente anacrónica da crença de que a única ortografia verdadeira é a ortografia que aprendemos na escola primária. Tudo o que veio antes era ainda a língua à procura da sua verdadeira ortografia, revelada, como texto sagrado, aí por meados do século XX. Tudo o que veio depois, claro está, são modernices degeneradas.
Ora, a ortografia é uma convenção, que a todos convém conhecer, mas não é um conjunto de regras sagradas, inscrito em pedra para todo o sempre.
Tenho para mim (mas posso estar errado) que a ortografia não só não é eterna, como não devia ser regulada por lei, como se tivesse de ficar definida para todo o sempre. O inglês sobrevive bem sem leis que digam qual é a ortografia correcta. Aliás, ao contrário do que se possa pensar, a regulação legal da ortografia acaba por ser fonte de instabilidade: a ortografia fica sujeita aos experimentalismos de quem quer afinar a forma como todos escrevemos. Se a sintaxe fosse regulada pelo Parlamento, mais tarde ou mais cedo lá apareceria alguém a dizer que a sintaxe da língua portuguesa tinha de ser unificada. Como não é, fica nas mãos de quem fala português, e está muito bem assim.
Adiante. O curioso comentário representa também o síndroma “depois de mim, o dilúvio”. Aparentemente, houve uma altura em que os portugueses escreviam bem (menos o Eça). Depois, apareceu a Internet e estragou tudo; outros há que acusam o sistema de ensino, a televisão, os telemóveis ou, genericamente, os “jovens”, que parecem já ter nascido com vontade de estragar tudo.
Mas, pergunto: será que a população portuguesa de há 50 anos tinha melhor ortografia do que hoje? Se nos lembrarmos da taxa de analfabetismo dessa altura, talvez comecemos a duvidar dessa ideia.
Ainda uma terceira nota sobre esta ideia peregrina de que Eça escrevia mal: na verdade, escrever bem (como Eça) muito pouco tem a ver com a ortografia. A ortografia é a parte fácil (em que muitos falham, admito). Escrever bem é outra coisa, bem mais difícil.
Se olharem para os manuscritos dos grandes escritores, lá estarão as gralhas, às vezes as abreviaturas a lembrar os nossos SMS de má fama e alguns verdadeiros erros: nada disso lhes tira o valor. Os revisores e editores lá irão limpar aquilo tudo antes da publicação: o génio, esse, já lá estava mesmo enfeitado das gralhas e dos erros.
É isto argumento a favor de escrever com erros? Nem pensar! É apenas um pouco de perspectiva, por estes dias em que tantos gostam de acusar, tremendamente, todos os outros de escreverem mal. Ai, os velhos tempos em que todos éramos um Camilo em potência… Para onde vai este mundo?
Agora, uma confissão: não sei porquê, mas tenho um fraquinho por aquela orthographia oitocentista. Os lyrios têm outro encanto assim…
É uã phase extranna.
Eu diria antes: “tenho um fraquinho por aquella orthographia oitocentista.” E não, Eça não escrevia com erros, nem tão pouco Camões ou D. Dinis. Eram as grafias convencionadas da época e as impressões que se faziam. Ou será melhor dizer-se: hj ñ é como antes…? 🙂