Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Ensinar português castiço em Itália (por Anabela Ferreira)

Este blogue — já aqui o disse — leva-me a encontros muito interessantes. Há poucas semanas, recebi uma mensagem de uma leitora que anda há vários anos a ensinar a nossa língua: Anabela Ferreira, professora na Universidade de Bolonha. Perguntei-lhe se não gostaria de escrever um pequeno texto para sabermos todos como é ensinar português a italianos. O resultado está já a seguir.


Ensinar português castiço em Itália

Anabela Ferreira (Forlì, 2017)

Quando desembarquei em Itália com armas e bagagens, entre as quais a minha almofada preferida e a máquina de escrever elétrica que o meu pai me tinha oferecido (duas coisas absolutamente fundamentais para quem vai viver para o estrangeiro!) no dia 25 de julho de 1990, um dia depois da data histórica, nunca teria imaginado que me iria divertir assim tanto. Nunca teria pensado que além de vir a ensinar a nossa magna língua aos italianos, iria acabar por ser tradutora, lexicógrafa, escritora, divulgadora da cultura portuguesa, cozinheira, atriz, etc. e tal. Bom, mas estou a começar pelo fim — e isso não está certo.

Ensinar em Itália para um estrangeiro não é fácil nem agora nem o foi antes, ou durante a reforma universitária seguida daquela da escola, e que me apanhou em cheio. Eu aliás pensava que fosse mais fácil mas não era.

Fresca de licenciatura com os resultados publicados no dia 24 de julho (aqui está a referência à data história e não àquela da avenida), no dia seguinte já cá estava. Cheguei cheia de conceitos didáticos e conceções do ensino ideal, e acabei por começar a ensinar inglês e francês comercial numa escola particular, dando aulas ao final da tarde e à noite. Não foi fácil, compreende-se, ensinar coisas que nunca tinha estudado, numa língua que não era a minha, apesar dos extraordinários cinco anos de estudo afincado no Instituto Italiano de Cultura de Lisboa, onde aliás só voltei a entrar no passado mês de novembro de 2016, e com muitíssima emoção, para falar de um gastrónomo italiano de quem traduzi para português a sua obra-prima.

Passei os meus primeiros dez anos italianos a ensinar em escolas particulares, dando aulas em casa, traduzindo documentos para o tribunal e manuais técnicos, enquanto esperava que chegasse a minha hora de poder entrar na universidade italiana. E assim foi. Só que estávamos mesmo no meio da reforma universitária (ainda não se tratava do Processo de Bolonha, não, essa apanhei-a depois) — e assim passei mais dez anos da minha vida como precária, como professora contratada, até que me apercebi que não iria aguentar a situação por muito mais tempo, ou seja, levantar-me às cinco e meia da manhã, apanhar o comboio para poder estar na aula da Universidade de Bolonha às oito e meia, fresca como uma rosa para ensinar (todos os anos o programa e a cadeira eram diferentes) coisas interessantes a mais de 200 alunos e em duas faculdades diferentes. Foram anos fantásticos, os quais irão ficar para sempre no meu coração, por entre colegas maravilhosos com os quais aprendi muito, e alunos que ainda hoje me honram com a sua amizade. Alunos que hoje são meus amigos inclusive no Facebook, onde continuo a seguir a vida deles, por entre casamentos, alguns divórcios, e os filhos que já vão tendo.

Até que finalmente me decidi a escolher apenas uma das universidades, e hoje ensino apenas naquela que forma tradutores e intérpretes, com ainda mais estudantes do que tinha antes mas todos extraordinários. Acho que me divirto muito, pois até temos um grupo de teatro há oito anos e fazemos espetáculos musicais apenas em português. Ah, sim, continuo precária, ainda não sou efetiva, mas acho que um dia irei chegar lá.

Agora já falo melhor italiano, talvez demais até, e de certeza já não me irá acontecer uma peripécia igual àquela que me tinha acontecido logo no primeiro ano letivo da escola particular onde ensinava inglês e francês comercial. Tinha acabado de entrar, ao final da tarde, para dar a minha aula. Ainda não tinha chegado mais ninguém, e notei logo que a escola tinha sido assaltada pois no chão tinha encontrado aquilo a que nós chamamos, muito simplesmente, um pé-de-cabra. Telefonei logo para os carabinieri tentando explicar o ocorrido mas não me compreendiam, pois eu afirmava de pés juntos, que os ladrões tinham entrado com um pé-de-cabra! Só que em italiano não tem sentido pois diz-se piede di porco, ou seja, pé-de-porco!

Ecco, as línguas muito próximas têm destas coisas, e os trocadilhos também provocados pelos falsos amigos — pus-me a estudar este fenómeno com dedicação e divertimento. Eis alguns deles: tasca que em italiano significa bolso, cantina que é a adega, caldo que significa quente, depressa que não é rápido mas deprimida, dispensa que é a sebenta, squisito que não é o nosso esquisito mas, pelo contrário, significa delicioso, viola que é uma cor, o roxo, vila que é uma moradia, sem esquecer testa que significa cabeça, ou provincia que é uma divisão administrativa, isto é, corresponde ao nosso distrito. Mas há muitos mais. E assim se pode ver que andam para aí muitas línguas traiçoeiras.

Acabei por ter de publicar, por este e outros motivos, o livrinho 366 bons motivos para conhecer Portugal e aprender português para ver se esclarecia algumas coisas, como por exemplo que o português não é igual ao espanhol (!!) e que falar português castiço não é mais difícil do que o brasileiro, só porque o dialeto genovês tem uma cantilena igual ao português do Brasil!

Mas a coisa que mais me entristece é o hábito de se dizer um famoso dito italiano: fare il portoghese. É o nome que se dá a quem entra sem pagar num lugar, como por exemplo no cinema ou no estádio, ou anda de autocarro sem pagar o bilhete. Desde que vivo em Itália, inúmeras foram as vezes que já expliquei o motivo deste dito, escrevendo até para os jornais, dizendo que não são os portugueses que não pagam mas os romanos que se fizeram passar por lusitanos, aquando em 1514, o rei D. Manuel tinha enviado a Roma uma comitiva de cerca de 140 pessoas para trazerem uns presentes ao Papa Leão X, entre os quais um elefante, recordado até numa das obras de José Saramago. Mas não há maneira…

Bom, concluindo, ensinar português em Itália dá trabalho mas é fantástico. Os alunos universitários estudam muito e através das teses que elaboram, descubro sempre coisas que não sabia sobre o meu próprio país. Um país que pouco estima, aprecia e apoia os professores espalhados por este mundo fora, que com abnegação e teimosia tentam divulgar a própria língua e cultura como embaixadores voluntários de um país do qual nunca se esquecem. E para não me esquecer, criei um site — Lisboa-Forlì — para festejar, juntamente com todos os italianos interessados (e são muitos), os primeiros dez anos do ensino da língua portuguesa na universidade de Forlì.

RECEBA OS PRÓXIMOS ARTIGOS
Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

Comentar

15 comentários
    • En Espanha ua comida esquisita é o mesmo que uma comida deliciosa em Portugal. Mas em Portugal, uma comida esquisita é estranha, rara em espanhol. Ou seja, outro falso amigo.

      • Bom, tecnicamente, até poderia dizer-se que seria uã comida “extranhamente deliciosa” ou “inusualmente deliciosa”. É uã comida extranha ou rara, endebém.

    • Mais ou menos, coma no castelão.
      Uã tortilha ou uã pizza é deliciosa, pero nom vas dizer que é “esquisita”. Por que? Pois porque é algo usual, que já tes comido várias vezes. Nom é uã comida extranha ou rara, que nom comeras nunca.
      Ora, se vas comer uns caracóis; entom si que se diria que som esquisitos. A nom ser que comas caracóis tódolos dias… Penso que bem me entendiche.
      Por exemplo, eu penso que encaixa bem coa terceira aceçom do Estraviz (http://www.estraviz.org/esquisito) ou a primeira da Porto Editora (https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/esquisito). Sim; é uã comida elegante, fora do vulgar, fora do comum e “inusualmente deliciosa”.
      Sinceramente, nom acabo de ver onde está o falso amigo.

      • Os falsos amigos não se detectam através de dicionários, mas antes no uso habitual. Ou seja, temos um falso amigo quando temos uma frase concreta na língua original em que o sentido duma palavra é enganador por causa da semelhança da palavra original com uma palavra portuguesa (mesmo que os sentidos no dicionário até sejam parecidos). Por exemplo, os sentidos da palavra “apenas” que aparecem nos dicionários de castelhano são mais ou menos os mesmos que aparecem nos dicionários de português. Só que em muitas frases espanholas o sentido é “mal” (“apenas interacciona”>”interage muito pouco”) e em português é quase sempre “só”. Assim, é um falso amigo na vida prática dos tradutores. Espero ter-me explicado. 🙂

        Da mesma forma, “esquisito” em português é quase sempre negativo; tem quase sempre conotações de algo estranho, que não queremos. O mesmo não se passa no espanhol. Isto é independente da lista de significados no dicionário: é um problema prático de tradução.

  • Cantas línguas tem a Itália? Eu conto cinco: italião, alemám, ocitão, ladino e catalám. Nũa entrevista penso que dixeram que a Itália tinha 12 línguas, mais eu nom as vejo. Só vejo cinco.

  • Português castiço (europeu) x português brasileiro (não castiço).

    Genovês tem uma, frise-se, cantilena (canto arrastado e monótono) igual à do português do Brasil.

    Mas lhe dói que se diga “fare il portoghese” e ainda se dá ao trabalho de explicar que não se tratava de portugueses.

    O preconceito doeu-lhe quando foi com ela, mas não a faz atentar para o modo desrespeitoso com que se refere ao português brasileiro.

    Pois está mais do que na hora de assumirmos que falamos brasileiro castiço.

    • Li o texto (aliás, publiquei-o) sem detectar a mínima falta de respeito. Se substituir “castiço” por “lá da minha terra” e “cantinela” por “ritmo” (tanto o português do Brasil como o de Portugal têm a sua cantinela própria), verá o que quero dizer. Há muitos textos por essa internet fora cheios de preconceitos. Este não me parece ser um deles.

      • Ora, se se substituírem palavras supostamente ambíguas por outras que o não são, vão-se limpar muitos textos mais explicitamente preconceituosos do que esse. É fato, todavia, que se usou castiço, e não lá da minha terra, e cantilena, não ritmo.
        E que se vai encontrar no dicionário por castiço? http://www.aulete.com.br/casti%C3%A7o
        E que se vai encontrar no dicionário por cantilena?
        http://www.aulete.com.br/casti%C3%A7o
        Nem a primeira é sinônima de lá da minha terra nem a segunda é sinônima de ritmo.
        E não insinuo nem quero insinuar que a autora tenha horror a brasileiros, ao português brasileiro ou que possa ser acusada de qualquer coisa perto disto. Não, não mesmo. É, em certo sentido, até pior que isto: mesmo portugueses esclarecidos, que não têm nenhuma animosidade aos brasileiros, que leem autores brasileiros e apreciam música brasileira consideram o português do Brasil uma variante engraçadinha do português a sério, que seria, evidentemente, o europeu. E este tipo de atitude está, inclusive, na raiz da oposição de muitos ao AO 90, que julgam atender às idiossincrasias do português engraçadinho do Brasil.
        Você sabe do que falo, Marco.

        Em tempo: não quis, com a referência ao AO90, sugerir que seja este sentimento a razão de você não o seguir, embora até hoje eu não entendesse por que alguém que, como você, sabe que a ortografia é dos aspectos mais superficiais de uma língua resiste a uma mudança que não deveria, depois de feita, suscitar paixão em ninguém. Antes de feita, eu concordo que deveria levantar fortíssima oposição, em cujas fileiras eu não só estaria como me destacaria, porque repilo a ideia de que o Estado regule algo que deveria evoluir espontânea e organicamente. Mas depois de feita? Adaptei-me e hoje nem me ocorre escrever idéia, vôo ou cinqüenta. E olhe que acho que a trema era muito mais útil que cês e pês que não se pronunciam.

    • Bem, eu sou brasileiro, e não vi também preconceito em relação ao português do Brasil; aliás, quando se diz que o português do Brasil é cantado, sempre que o ouvi, foi em termos de elogio, pois se segue: “é bonito”. Além de quê, não se pode comparar o “fare il portoghese”, com sentido explicitamente pejorativo, dado o contexto histórico, e “cantilena”, que apenas conota ritmo.

  • Penso que o uso da palavra “castiço” ali denote, sim, uma visão preconceituosa. O português brasileiro não é “castiço”, ou seja, não é o correto. A expressão castiço é sempre usada nesse sentido.

    Quanto ao uso de cantilena, não achei preconceituoso.

Certas Palavras

Arquivo

Blogs do Ano - Nomeado Política, Educação e Economia