Quando escrevemos, estamos cegos. E nem sequer podemos apalpar o terreno, porque temos as mãos atadas.
O que quero dizer com isto?
Olhem para alguém a conversar: quem fala vê a reacção às suas palavras em tempo real, adapta o tom a essa reacção, volta atrás, pára, consegue perceber se o outro está a compreender ou não. Quando chega a sua altura de ouvir, sorri ou franze o sobrolho — ou usa um dos muitos gestos da cara ou do corpo que tornam as conversas muito vivas e interessantes.
Ora, quando estamos a escrever, é como se estivéssemos a falar com uma venda nos olhos: não vemos quem nos ouve, às vezes nem sabemos quem são ou quantos são…
Temos uma venda nos olhos e, ainda por cima, parece que temos as mãos atadas atrás das costas… Se repararem bem, quando conversamos, as nossas mãos mexem-se quase tanto como a língua. Quando escrevemos, as nossas mãos desaparecem e temos palavras apenas, sem tom, sem gesto, sem cheiro.
O alívio que é estar fente a frente, tocar ao de leve no braço da outra pessoa para dizer “vá, estou só a brincar”. Ou então fazer uma cara séria ou ironizar com o tom da voz.
A nossa linguagem e o nosso corpo ligam-se de forma íntima. Quando escrevemos, deixamos as nossas palavras sozinhas, perante o leitor, sem a protecção do nosso corpo e dos nossos gestos.
É por isso que a palavra escrita é tão perigosa. Está sujeita a muitos enganos e não podemos corrigir facilmente um qualquer descuido ou falha de interpretação. Ora, sendo perigosa, é, ainda por cima, mais permanente: a palavra dita da boca para fora pode até ofender, mas se tudo correr bem em breve está esquecida. A palavra escrita fica. E mói. E às vezes engana durante séculos e séculos.
Tudo isto para vos dizer que é por isso mesmo que os bons escritores são génios e o seu trabalho muito mais difícil do que se diz por aí.
Os bons escritores conseguem usar a seu favor as limitações da palavra escrita, criando ambiguidades e pequenas ironias que são a base de muito do prazer da literatura.
Outras vezes, ultrapassam todos esses limites: rasgam a venda e desatam as mãos e fazem-nos crer só com as palavras que estamos mesmo lá, a ouvir aquilo que nos dizem e a ver aquilo que nos contam.