Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

O que escrever quando nasce um filho?

Confesso: ia-me esquecendo da crónica. Porquê? Quem leu o que escrevi na semana passada é bem capaz de adivinhar: o miúdo acertou na data e nasceu mesmo no dia 14.

E, assim, vejo-me naquela rotina espantosa dos primeiros dias, a dormir aos bocados, a pôr o bebé a arrotar depois da mama, a tomar conta do irmão, a aprender a viver agora a quatro.

Pois, ia-me esquecendo, mas não me esqueci — e aqui estou, perante a página em branco, sem saber bem o que escrever.

Bem, está decidido: vou começar no A e acabar no Z.

A… Ora, o A… A primeira letra. Lembro-me duma certa palavra, mas não pode ser. Demasiado banal. Isto começa bem: não sei o que escrever na primeira letra… Fica para o fim.

Banho. O miúdo é tão pequeno. A água está demasiado quente ou demasiado fria. Ele chora. O que fiz? Queimei-o? Parti alguma coisa? Ele acalma. Afinal gosta. Depressa, que está frio — toca de o vestir para ir mamar. E chora de novo quando o tiro da água.

Cocó. Depois de ter um filho, uma pessoa tem de pôr as mãos na massa, ou seja, no cocó, essa estranhíssima palavra de bebé que continuamos a dizer já depois de adultos. Pois, por estes dias, até o cocó é parte da felicidade. (Peço ao leitor que me perdoe esta última frase — tenho dormido pouco.)

Dormir. Sim: pouco. Talvez até nem seja assim tão pouco — só que o sono fica dividido pelo dia todo. À noite, toca de acordar várias vezes. Durante o dia, toca de encostar a cabeça várias vezes. É assim que tenho sonhos às cinco da tarde e acabo a ler e a responder a mensagens às cinco da manhã.

Enfermeiras. Nas primeiras horas, entravam e saíam sem quase notarmos. São a companhia bem-disposta dessas horas atarantadas.

Futuro. Sei lá o que há-de ser o futuro. Olho para esta criança e imagino o mundo em 2038, terá ele 20 anos, ou em 2068, terá ele 50 anos. Os números são quase absurdos, como eram absurdos números como 2000 ou 2018 quando eu nasci. O mundo não se prevê — vive-se o melhor possível.

Gabinete. Ao segundo dia, lá foi ele ao gabinete do hospital onde se registam as crianças — e onde, descobrimos agora, se tira a primeira fotografia oficial para o famoso Cartão do Cidadãozinho. E pronto: já ficou habilitado a pagar impostos.

História. Sim, ao nosso lado passam os dias do mundo como uma televisão ligada que ninguém vê. Devia escrever crónicas sobre notícias, sobre o mundo, sobre os grandes acontecimentos da semana — e agora não consegui. A História há-de voltar, mas para já a História que me importa dorme aqui ao lado.

Irmão. É estranho pensar que, há cinco anos, este rapaz falador e curioso que está a tentar adaptar-se à nova vida com um irmão era o recém-nascido que nada dizia e apenas mamava (e fazia o tal cocó). Agora, apresenta-se baixinho ao irmão: «Sou o teu mano!»

Jogos. E brincadeiras. E risos. E cócegas. Ele — o irmão — mal pode esperar. Nós também não. Há-de haver, claro, choro e zangas e birras. Faz parte. Mal posso esperar.

Livros. Uma confissão: há cinco anos, aquando do primeiro filho, comprámos um ou dois daqueles livros que ajudam a enfrentar o bicho. Pois, desta vez, nem nos passou pela cabeça.

Medo. A grande surpresa que tive há cinco anos, quando nasceu o primeiro filho: o medo que aparece donde menos se espera. Agora, foi a mesma coisa, mas já estava preparado — julgava eu. Afinal, não estamos, nunca estamos —  mas avançamos.

Nascer. Logo de madrugada, às cinco e meia da manhã. Num mundo ensonado, em silêncio, pelos corredores dum hospital quase vazio, momentos que ficam gravados para sempre na memória de todos — menos dele (e também para que ele a leia um dia escrevo esta crónica).

Opiniões. Há as bem-intencionadas: deve deitar-se para baixo; deve deitar-se para a esquerda; deve dormir a fazer o pino. Depois, há as torcidas: ah, pois, no meu tempo isso não era assim e vejam lá como estou aqui. Por vezes, resvalamos para a mesquinhice: os pais de agora, as crianças de agora, o cocó de agora…

Primos. Dois primos babados já a imaginar as brincadeiras do futuro. Uma prima à distância que fala com o bebé pelo ecrã do telefone e fica derretida, a mandar festinhas em duas línguas.

Quarto. Desta vez, deixámos quase tudo para a última — mas agora lá está o quarto enfeitado com dinossauros (há cinco anos foram piratas). É o mesmo quarto do irmão que, de qualquer forma, escapa-se de lá quase todas as noites para vir dormir um pouco ao pé de nós e do irmão.

Recordações. Porquê esta compulsão em tirar fotografias? Para mostrar ao bebé? Para não deixar escapar estes dias que são difíceis, mas sabem bem? Não sei, mas é difícil evitar: e depois, já não em papel como nos tempos em que nasci, seguem para a família, que ouvimos fazer um «oohhh» mesmo à distância de quilómetros.

Sorriso. O rapaz sorri aos quatro dias. Todos nos dizem: ah, isso não é sorrir, é apenas um espasmo ou algo assim. E olhamos para o sorriso dele e sorrimos também (não podemos evitar, é um espasmo).

Tios. Verdadeiros e emprestados: olham para ele como olhei para os meus sobrinhos, com aquele outro amor mais leve (no bom sentido), sem o peso das noites mal dormidas, mas com curiosidade para saber o que vão ouvir da boca do miúdo. Há ainda os avós, que podia muito bem ter deixado lá em cima, na letra A, mas ficam aqui — e ficam muito bem.

Umbigo. No parto, o pai faz pouco: está ali a dar apoio, mas o apoio é sempre um pouco absurdo. Parece que empata mais do que ajuda — mas não podia estar noutro sítio qualquer. Depois, o bebé nasce, cai qualquer coisa dentro de mim, aproximo-me, boca aberta, mão encostada ao ombro dela e ouvimos o bom choro do bebé nascido — e, por fim, com as inevitáveis lágrimas nos olhos, corto o cordão e, os dois juntos, a olhar para ele, sabemos que é já uma outra pessoa pronta a começar a…

Vida. Que será como ele quiser e o mundo deixar — mas já neste momento em que apenas mama e dorme e faz cocó e chichi (ou xixi), desejamos profundamente, para lá de todas as certezas, que ele tenha sorte e consiga um pouco da felicidade que merece. Nós cá estaremos para ajudar o melhor que pudermos — e, claro, para limpar as fraldas do…

Xixi. Eu sei que o costume é escrever «chichi», mas tenham algum dó de mim que cheguei até aqui e não tinha palavras para esta maldita letra. Pois fica o chichi nesta grafia alternativa, mais uma palavra que, bem vistas as coisas, continuamos a dizer pela vida fora mesmo entre adultos, porque há coisas em que todos somos bebés.

Zélia. Fazer uma crónica assim, por ordem alfabética, é um pouco arriscado. As palavras nem sempre aparecem no sítio certo. Mas aqui a tal ordem implacável acertou em cheio — a última letra tinha mesmo de ficar reservada para o nome da mãe do bebé e nem é preciso dizer porquê.

Passo os olhos pelas letras todas e vejo que praticamente tudo aquilo que escrevi podia ter sido escrito por qualquer pai ou mãe. Não faz mal. Ter um filho ajuda-nos a não ter medo de dizer coisas que não são originais. Porque ter um filho é tudo menos original — e, no entanto, parece sempre a primeira vez. Ora, nesta segunda primeira vez em que temos um filho sentimos as dúvidas, os nervos, o cansaço, o mundo, o trabalho, os problemas a continuar à nossa volta — e nós a querer uns momentos de pausa para ficarmos, babados, a olhar para esta criança que ainda não sabe o que lhe aconteceu.

E o que lhe aconteceu foi, apesar desse mundo todo, muito bom. Nasceu — e nós não conseguimos evitar (é mais forte do que nós) sentir qualquer coisa que só conseguimos descrever usando a tal palavra banal de que tinha medo no início deste texto, mas que não posso deixar de dizer agora: amor.

Publicado no Sapo 24 no dia 21 de Janeiro.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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6 comentários
  • Linda crónica.
    Lindo momento que está a viver (eu estou à espera da primeira neta). O mundo fica mais bonito quando nasce uma criança.
    Muitas felicidades para os quatro.

  • Linda crônica. E xixi é válido em português brasileiro (não fazia ideia de que, em Portugal, escrevia-se chichi).

    Parabéns e felicidades à família.

  • Dia 14 de janeiro? Linda data. No mesmo dia, no longínquo ano de 1946, nasci eu! Parabéns!
    Gosto muito das suas crónicas. Esta enviei para todos os filhos, que já passaram todos por experiência idêntica, a última há escassos 3 meses.

  • Parabéns. O “A” já sabe há muito tempo o que significa “Amor incondicional”. É ou não é?

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