Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

O Euro, o sabor da vitória e o elogio do bom falhanço

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Sim, eu sei: isto de arranjar lições depois da vitória já cansa, não é? Andamos todos a ouvir os pensadores da bola e não só: ah, isto prova isto. Depois disto vamos todos passar a ser aquilo. Agora é que vai ser. E ficamos cansados.

Porra: ganhámos. E isso chega. A festa foi bonita, pá! E pronto. Andar a pensar nisto é como filosofar sobre o amor enquanto estamos sentados na cama, no famoso cigarro pós-____.

E, diga-se, depois de Paris, percebemos que a diferença entre não ganhar a taça e ganhar a taça (ou seja, a diferença entre 2004 e 2016) é um pouco a diferença entre pedir alguém em casamento e ouvir um «não» e pedir alguém em casamento e ouvir um «sim». O nosso valor, a nossa coragem, o nosso esforço é o mesmo. Mas o resultado é tudo.

Pronto, tenho de admitir: sou daqueles que tem tendência para essas filosofias pós-vitórias. Por isso, cá vai disto.

Sim, foi uma vitória desportiva, meus caros. Mas o desporto é o palco onde as nossas identidades colectivas se mostram (é melhor assim). Ser português quer dizer muita coisa ou quase nada, mas quer dizer sem dúvida nenhuma que quando um dos jogadores com a nossa bandeira ao peito marca um golo, é como se fôssemos nós a marcar o golo. É pouco? É muito? Não sei: é bom.

Esta é uma vitória desportiva, no desporto mais importante da Europa. Por que razão é o desporto mais visto e amado pelos europeus? Não faço ideia. Mas que o é, não tenho dúvidas.

Continuando com reflexões pós-vitória-que-desta-vez-não-é-só-moral. Reparem numa coisa: nós tivemos uma sorte monumental neste Euro. Empatámos todos os jogos do grupo e passámos. Mais: os nossos amigos islandeses marcaram um golinho no último minuto do último jogo do grupo, golo esse que os islandeses não precisavam para passar, e puseram-nos, pela arte e engenho da matemática, a jogar contra a Croácia, contra a Polónia, contra o País de Gales. Boas equipas, principalmente a Croácia. Equipas simpáticas, principalmente os galeses. Mas do outro lado tínhamos o campeão do mundo, o bicampeão da Europa, a França. Todos a eliminarem-se uns aos outros até sobrar só um, para ir ter connosco a Paris.

Por isso, equipas daqueles que assustam mesmo? Só na final.

Mas que equipa! O nosso bicho-papão! A única equipa contra a qual nunca ganhamos.

E se tivesse sido outra?

Inglaterra? Easy-peasy.

Alemanha? Ainda há uns anos demos-lhes três secos. Difícil, mas não impossível.

Itália? Ah, não era fácil, mas havíamos de dar a volta nos penaltis, que eles quando chegam lá são uns coxos.

Espanha? Havíamos de dar a volta. Três vezes seguidas é demais, amigos.

Agora a França? Ui, impossível. Nem com toda a sorte do mundo. Só se for o Ronaldo num dia de sorte.

Pois, enfim, como se diz, o resto é história: o Ronaldo para o banco, o Éder para o céu. O Éder e todos nós. O que eu gostava de sublinhar é isto: foi sorte, mas foi uma sorte muito provável.

Porquê? Ora, até os comentadores da BBC fartaram-se de falar disto: Portugal vai às meias-finais muitas vezes. Já somos habitués, como se diz em bom francês.

Vão lá ver: desde 2004, tivemos 7 campeonatos a sério (mundiais e europeus). Fomos a 4 meias-finais! Mais de metade das vezes.

O que é que isto quer dizer? Quer dizer que era provável que mais cedo ou mais tarde tivéssemos sorte. Mesmo num Euro em que empatámos muito.

Isto é desvalorizar o que aconteceu? Nem pensar! Antes pelo contrário!

Ou seja: falhámos muito, mas fomos falhando cada vez melhor. Podia nunca dar-se o caso de ganharmos, é verdade. Mas, com tanto esforço ao longo de tanto tempo, era provável que conseguíssemos. Por isso, a vitória também é de todos os que tentaram e não conseguiram, porque sem eles seria muito menos provável.

Agora, podia pôr-me aqui a dizer que isto também se aplica noutras áreas da vida, da escrita ao amor, mas deixemo-nos disso.

Ganhámos! Por fim! E parece que todos estávamos lá, a levantar a taça.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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