Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Existem várias línguas árabes?

1. A língua de casa e a língua da escola

A situação linguística dos países de língua árabe confunde-nos: afinal, a língua oficial é o árabe, mas os locais dizem-nos que as diferenças entre os vários árabes são tão grandes como entre as línguas latinas. Se um marroquino conversar com um iraquiano na língua que usa para falar com os filhos, ninguém se entende.

Ora, o que se passa nos países árabes é algo semelhante ao que se passou na Europa durante grande parte da nossa História: as línguas que falávamos em casa eram já formas muito alteradas duma língua comum, mais antiga. No entanto, essa língua comum (o latim) mantinha-se, na sua forma clássica, como língua oficial, transmitida através do ensino, dos governos e da Igreja.

2. E se, nos países latinos, falássemos todos latim?

Se quisermos imaginar uma situação semelhante no presente, podemos imaginar um mundo em que a língua oficial dos vários países latinos continuasse a ser o latim, mas todos falássemos português, galego, espanhol, etc. na nossa vida pessoal.

Todos teríamos sido educados em latim, leríamos jornais em latim, escreveríamos em latim e, provavelmente, nem acharíamos estranho falar uma língua em casa e outra na escola.

Tal como os árabes, também nós comunicaríamos sem dificuldade com italianos, romenos, espanhóis e franceses, usando nesses casos o latim clássico. Entre portugueses, usaríamos o vernáculo português, em toda a sua variedade regional e social. Se nos perguntassem, diríamos que a nossa língua é o latim, ponto final.

Alguns autores mais virados para o povo utilizariam o vernáculo na literatura, haveria um ou outro programa de rádio na língua informal, mas os tribunais, as televisões, o governo, tudo isso seria em latim. Talvez um político ou outro usasse o português para bater mais fundo no coração do povo.

3. Diglossia: A Tale of Two Languages

A situação nos países árabes é aquilo a que os linguistas chamam diglossia: uma situação em que duas línguas ou dois dialectos coexistem numa mesma sociedade, mas são usados em contextos sociais diferenciados.

É o que acontece, por exemplo, na Suíça de língua alemã, onde o alemão oficial é usado em muitas situações formais, mas todos falam entre si, fora dessas situações formais, em suíço-alemão (uma língua bastante diferente). A situação consegue ser complexa a este ponto: é possível que um professor universitário use o alemão quando está a dar uma aula, mas passe a usar o suíço-alemão quando está a conversar, em privado, com os alunos.

Muitos dirão: então, mas o suíço-alemão não é um dialecto? Na realidade, chamarmos língua ou dialecto àquilo que se fala em casa não quer dizer muito: o que conta é haver uma forma oficial muito diferente daquilo que se fala em casa.

Na prática, todas as línguas sofrem um fenómeno parecido, em maior ou menor grau: o português formal (e o português escrito) não é igual ao português informal (bem mais variado e rico, para dizer a verdade). No Brasil, esta diferença é ainda mais marcada.

4. Os árabes falam todos árabe(s)

Voltando aos países árabes: o que temos é uma língua oficial comum, com uma longa literatura, transmitida pelo sistema de ensino e usada na escrita e uma série de variadíssimos dialectos ou línguas orais (chamemos-lhe o que quisermos).

A comunicação entre todos está garantida pela aprendizagem da língua oficial, mas as línguas em que as mães falam com os filhos já são outras.

Apesar disso, a população não considera a situação anormal: é tão natural como, para um português, usar palavras da sua terra quando vai visitar os avós. A designação de árabe abrange não só a língua clássica e o padrão oficial (o árabe moderno padrão, que já não será o puro árabe clássico), mas também todos os vários árabes coloquiais.

A resposta à pergunta “que língua fala?” será sempre “árabe”, mas por trás temos esta estranha e intrigante situação.

5. E o inglês? Será o novo latim?

Agora, uma pequena provocação: não será que, por toda a Europa, o inglês é hoje o que o latim foi um dia? Não sendo oficial, serve, em muitos casos, para a comunicação oral entre falantes de línguas maternas diferentes. Será que estamos a caminhar para uma situação diglóssica entre o inglês e cada uma das outras línguas europeias?

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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7 comentários
  • Ótimo artigo. De facto, o mesmo se passar com o chinês. As dificuldades de compreensão mútua que possam ter os falantes das diferentes variedades do chinês são as mesmas que os falantes de francês, italiano, português e francês entre si.

    Quanto ao inglês, com certeza está a funcionar como o novo latim.

  • No caso do chinês acho que nom som variedades da mesma língua, mas línguas diferentes que se escrevem igual, com a mesma representaçom ideográfica

  • Ótimo artigo. Seria incrível se existisse no Brasil essa relação saudável que se vê na Suíça. Aprendemos na escola a usar construções sintáticas que nunca tínhamos ouvido antes em nossas relações familiares como o jeito certo de falar português, relegando a nossa forma ao falar dos bárbaros ignorantes. É preciso haver essa consciência de usos em contextos sociais diferenciados.

  • Bom, o alemám “culto” da Suíça tamém tem diferenças com respeito ao da Alemanha. A mais notável. nom existe o eszett (ß). “ss” pra tudo e ponto.
    A situaçom da Itália tamém se poderia comparar coa do árabe. Os dialetos italiãos podem chegar a nom ser inteligíveis antre si (a língua da casa), mais um abitante da Sicília pode conversar sem problemas cum de Piemonte graças ao estândar (língua culta e formal).

  • Caro professor, parece-me que o inglês antigo era muito mais rico gramaticalmente que o inglês atual, contendo as inúmeras variações que enriquecem a língua, tais como as formas verbais; declinações etc. Este fenômeno foi um caso isolado ou nós, de língua portuguesa corremos este, a meu ver, grave erro ? Fico pensando que dificuldade teria Virgílio em escrever a Eneida em inglês.

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