Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

«Fazer a barba» ou «desfazer a barba»?

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Digam-me lá: acham que devemos dizer «fazer a barba» ou «desfazer a barba»?

«Fazer a barba», claro. «Cortar» é um dos significados do verbo «fazer», desde que anteceda «a barba».

Agora, descobri no blogue de Helder Guégués (a que cheguei através de um dos sítios do costume) que há quem insista no «desfazer a barba».

Porquê?

Por causa, presumo, duma visão simplista da lógica da língua: se estamos a tirar alguma coisa, não podemos usar o verbo «fazer». (É isso ou outra coisa qualquer.)

Penso que esta tendência para inventar erros radica também na agradável sensação que algumas pessoas sentem ao ver os outros a errar. Se convencermos o nosso pobre cérebro que «fazer a barba» é erro, vamos assistir em gozo silencioso a muito erro alheio.

Em resumo, há quem encontre uma lógica aleatória para justificar uma irritação pessoal e, a partir daí, conclua que «os outros são estúpidos».

Isto funciona mais ou menos assim:

  • «Espera lá! A barba não se faz. Logo, não podemos “fazer a barba”. Logo, os outros são estúpidos.»
  • «Espera lá! “Comer” é verbo. Logo, não podemos dizer “o comer”. Logo, os outros são estúpidos.»
  • «Espera lá! “LOL” começou como sigla inglesa. Logo, não podemos usá-lo como palavra portuguesa. Logo, os outros são estúpidos.»

Não, não, não! Não se fiquem pelo primeiro passo. Pensem mais um bocado.

Pensem com um pouco menos de pressa na forma como a língua, de facto, funciona. Não fiquem convencidos que a língua obedece a uma lógica muito superficial e muito fácil, ao serviço das nossas irritações de ocasião.

Pensem que:

  • Há verbos com significados muito variados. «Fazer» é um deles. «Tomar» é outro. E por aí fora. «Fazer» quer dizer imensas coisas, incluindo «cortar a barba». E todos entendemos bem a expressão.
  • Há verbos que podem ser usados como substantivos: «o saber», «o olhar», «o comer». Sim, esta última expressão não é lá muito bem-vista em certos círculos, mas daí até representar um erro de português vai uma grande distância.
  • Quanto ao «lol», irrita muita gente, mas é uma sigla inglesa que se está a transformar em palavra portuguesa para uso em situações informais (talvez perdure, talvez não) — o mesmo já aconteceu com «laser», por exemplo, num registo muito menos informal.

Cada um fique com as irritações que quiser, mas não imponha lógicas criadas à força para as justificar. A língua é muito mais complexa do que isso, sujeita a mecanismos que mal começámos a compreender.

Tudo isto para dizer que impor o uso de «desfazer a barba» em vez de «fazer a barba» é um preciosismo inventado à pressão sem qualquer razão.

UMA VERSÃO REVISTA DESTE ARTIGO FOI PUBLICADA NO LIVRO
DOZE SEGREDOS DA LÍNGUA PORTUGUESA.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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20 comentários
  • Gostei muito de seu texto, Marco! Há muitas pessoas que perdem tempo em criar rumores linguísticos sem fundamento teórico para mostrar-se inteligentes. Um caso típico é o do famigerado “risco de vida”. Basta um pouco de raciocínio para ver que o significado implícito é “risco de perder a vida”.
    Mas é mais fácil dizer que está errado e que os outros são estúpidos.

    • Confesso que não conhecia esse. Ainda há pouco tempo ouvi alguém queixar-se do «espaço de tempo», como se a nossa imaginação temporal não estivesse indelevelmente ligada à imaginação espacial. Alguém devia recolher estas pérolas de quem se acha muito purista.

  • Por ser tão interessante e de imediata compreensão vou partilhar com os jovens cá de casa, dos 9 aos 13 anos. O “simplifiquempobrecimento” da língua é um dos temas mais debatidos durante o jantar, após a apresentação de um livro ou o resultado de um teste de português.

  • Alto aí, ‘espaço de tempo’ discordo, não é associável aos outros casos.
    Primeiro, é desnecessário, pode (deve) dizer-se ‘lapso’, que mantém o som e custa menos a dizer…
    Depois, é literalmente incorrecto: espaço e tempo são as duas categorias ou vertentes do ‘ser’ (nada existe fora do tempo e do espaço, o que é é no espaço e no tempo), não podemos misturá-las sem criae confusão. Ou não?

    • Não concordo.

      O cérebro humano trata o tempo usando conceitos ligados ao espaço e todas as línguas reflectem isto usando expressões espaciais para se referirem ao tempo: «andar para trás no tempo», «andar para a frente» ou «vamos em frente» (referindo-se, uma vez mais, ao tempo). Isto é tão natural que, em muitos casos, nem nos apercebemos que estamos a falar do tempo usando metáforas relacionadas com espaço. Por exemplo, a «linha do tempo» com que explicamos os tempos verbais na escola acaba por ser também uma metáfora espacial.

      «Espaço de tempo» é apenas mais uma destas expressões que usa referências espaciais para melhor lidar com a realidade bem difícil que é o tempo.

      O livro The Sense of Style, de Steven Pinker, explica isto muito bem: por vezes, usar expressões espaciais é a única forma de conseguirmos falar do tempo naturalmente. O ser humano tem esta tendência cerebral para preferir visualizar o tempo em forma de espaço. (Abusando um pouco da ciência, podemos dizer que Albert Einstein veio dar confirmação científica a esta realidade: afinal, espaço e tempo são a mesma realidade.)

      Por isso, nada tenho contra a expressão em causa. Aliás, não me ocorre nenhuma frase em que «espaço de tempo» provoque alguma ambiguidade ou confusão.

      Sim, «lapso» pode ser preferível, mas apenas por motivos de sonoridade e gosto pessoal.

  • Então por esta lógica de ideias você se têm relva no Jardim você faz a relva não corta a relva se têm que ir a um cabeleireiro você vai fazer o cabelo não vai cortar o cabelo se têm as unhas grandes você faz as unhas não corta as unhas se têm uma árvore que quer retirar você faz a árvore não corta a árvore?

    • As colocações verbais dependem do substantivo. Assim, em bom português, fazemos a barba mas não fazemos as árvores — são aquilo que se chama tecnicamente colocações diferentes. A língua é mais complicada do que parece.

    • Diga-se ainda que, para «barba», podemos usar tanto «fazer» como «cortar». Já no caso de árvore, podemos usar «cortar», mas também «abater» (entre outros). Espero ter esclarecido a dúvida.

  • Fazer
    Verbo transitivo
    1-dar existência ou forma a.
    2-criar;produzir
    3-gerar
    4-construir
    5-inventar
    6-realizar
    7-arranjar
    8-representar
    9-completar
    10-concluir
    11-alcançar
    12-percorrer
    13-formatar
    14-conceder (título, graça ou mercê)a
    15-causar
    16-haver

    Para mim nada destes verbos me dizem nada com fazer a barba

    • Acha mesmo que a língua cabe toda num dicionário? Alguns dicionários conseguem representar muitas das colocações, outros nem por isso. O mesmo dicionário onde foi buscar a lista tem isto (leia tudo): https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/barbeiro

      O erro em que está a cair é muito comum. No entanto, mais uma vez, a expressão «fazer a barba» é perfeitamente legítima, tal como «tirar uma fotografia» (em que também não usamos o sentido mais comum do verbo), etc.

      Em resumo, como quase todos os falantes sabem, em português, o verbo «fazer» tem o significado de «cortar» quando anteposto a «barba».

  • Tirar uma fotografia está correta porque vamos tirar uma imagem para uma máquina fotográfica agora com respeito a barba vamos usar lâminas cortantes para cortar nao para construir as máquinas de cortar servem pura e simplesmente para cortar nao construir
    Palavra correta vou cortar a barba, vou cortar o cabelo, vou cortar as unhas, Assim se fala em bom portugues

    • Mais uma vez: o significado do verbo «fazer» é muito mais complexo do que crê e não pode ser analisado de forma simplista. Tenho pena que fique com essa ideia errada na cabeça.

      Volto a repetir: «fazer a barba» é português perfeito, pois é perfeitamente compreensível e é usado pelos falantes em todas as situações. Se seguíssemos a sua lógica, não poderíamos dizer «fazer a cama» (não a estamos a construir), «fazer a folha» (expressão idiomática com significado de «tramar»), «fazer tempo» (ficar à espera), etc., etc. O verbo «fazer» tem muitos significados, incluindo, no caso da barba, «cortar». É assim que funciona a nossa língua.

  • Fazer a Folha é um dito que significa vou deichalo como uma Folha, concidera-se construir transformar etc.
    Fazee a cama é calāo, correto é arranjar arrumar a cama porque está desarrumada,
    Fazer tempo? Nós não fazemos tempo, simplesmente ficamos á espera ou esperamos falando o bom português o resto é calão são costumes de frases ditas pelos portugueses que não existem nos nossos dicionarios

    • Está a cair em vários erros:
      a) «Fazer a cama» não é calão. É uma expressão muito comum em vários registos da língua.
      b) «Fazer tempo» é uma expressão idiomática registada nos bons dicionários.
      c) «Fazer a folha» é uma expressão idiomática que não pode ser interpretada da forma literal que descreve.
      Não caia no erro de tentar olhar para a língua de forma literal, como se cada expressão ou palavra só pudesse ter o significado mais óbvio e imediato. É uma das grandes armadilhas das análises pouco profundas da língua. É uma atitude que rapidamente nos leva a cair em conclusões erradas (como dizer que «fazer a barba» é erro porque não estamos, literalmente, a fazer nada).

  • Ninguém faz barba a barba corta-se pois ela se faz por natureza tal como todos os cabelos pelos do nosso corpo

    • Todos os barbeiros fazem a barba aos clientes. É a expressão mais comum, sinónima de «cortar a barba», e perfeitamente correcta. Dizer o contrário é cair no erro do literalismo. Repare que pode continuar a dizer «cortar a barba»: está correctíssimo. Mas também está correcto dizer «fazer a barba».

  • A palavra (porra) é considerada palavrão porque não existe no nosso dicionário, tal como muitas frazes que são errôneas e só são divulgadas por costume,
    Eu próprio tenho por costume dizer (vou fazer a barba)
    Mesmo vendo que não está correto

    • Sim, «porra» é palavrão e faz parte do calão. No entanto, está nos dicionários (com a indicação de que é calão). Já «fazer a cama» não é calão.

      Seja como for, ser ou não ser calão nada tem a ver com a correcção da expressão «fazer a barba». Está correctíssima e, tal como todas as outras expressões, existe e é aceitável porque foi inventada pelos falantes da língua ao longo dos séculos.

      Como digo no texto que acabei de publicar (https://certaspalavrasnet.wpcomstaging.com/fazer-barba-e-erro-de-portugues/) vamos ter de concordar em discordar.

  • Ok ok ok obrigado
    Pois eu sempre corto a barba se você a faz tudo bem tenho amigos que teem pouca barba vou mostrar este saite a eles

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