Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

«Fazer a barba» é erro de português?

Anda uma pessoa descansada por aí quando sente o telemóvel a avisar: tem um novo comentário no blogue.

Antes de mais, gostava de agradecer aos meus leitores: recebo por aqui excelentes comentários, que às vezes valem mais do que o próprio artigo. Basta pensar nos comentários à aventura das línguas da Eurovisão

Os comentários críticos são também, quase sempre, muito agradáveis e simpáticos. E foi sem acrimónia que um leitor, há pouco, tentou convencer-me de que «fazer a barba» é mesmo erro de português, apesar do que por aqui escrevi já vai para dois anos.

Ainda dialoguei um pouco com o leitor e, por fim, aceitámos que as nossas visões da língua são irremediavelmente diferentes.

Para o tal leitor, um verbo só pode ter o significado mais óbvio ou aquele que parece mais lógico. Se ao cortarmos a barba não estamos a construir nada, então não podemos usar tal expressão.

Para mim, pelo contrário, os significados das palavras são um pouco mais malandros e dão umas piruetas engraçadas. Não há nada que possamos fazer quanto a isso — e ainda bem.

***

A minha questão, agora, é esta: qual é o percurso mental que leva algumas pessoas a considerar erro algumas expressões e não outras, onde também podíamos martelar uma qualquer falha lógica?

Julgo que será algo assim:

  1. Imbuído da ideia falsa de que uma palavra só pode ter um significado ou de que os sentidos menos literais de cada expressão estão sempre errados, um falante desprevenido descobre um erro na língua portuguesa. Por exemplo, «fazer a barba». Ah, pois! Nós não fazemos a barba! É erro! É erro! Ah, malandros dos portugueses, que andam há tanto tempo a usar uma expressão tão errada…
  2. O falante fica feliz: apanhou todos os outros em falso. Sabe um pouco mais do que o vizinho. Como um dos problemas cognitivos a que todos estamos sujeitos é a crença de que somos mais espertos do que a maioria das outras pessoas, é fácil acreditar que, se todos dizem «fazer a barba», é porque todos estão errados (eu é que não). (Diga-se que este não parece ser o caso do leitor com quem andei a dialogar, pois ele confessou-me também usar a tal expressão.)
  3. Se sairmos em defesa da dita expressão e dissermos algo como «as expressões da língua não estão erradas só porque nos apetece» —  ou «devemos ter em conta a realidade da língua que sai da boca dos falantes» —  ou «as palavras têm significados claros e legítimos que, no entanto, nem os dicionários conseguem apanhar» — ou «a língua portuguesa deve ser estudada com respeito antes de nos pormos a corrigi-la à tonta» — a pessoa que andava por aí convencida de ter apanhado o resto do mundo em falta fica um pouco desiludida. Se aceitar os argumentos, esfuma-se naquele instante o poderoso perfume a superioridade. Ou então, o que é mais provável, não cede e defende a todo o custo a sua ideia muito particular de erro. Um pouco como aquele condutor que está em contramão convencido que os outros carros é que vão todos mal…

Usar a expressão «fazer a barba» não atrapalha nenhum falante e, na verdade, só irrita quem foi infectado pelo vírus das interpretações literais ou das piadas de barbearia.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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21 comentários
  • Não por achar erro, mas por ter um grande sentido de humor, meu marido costuma dizer ” desfazer a barba”…em vez de fazer a barba…

    • Na verdade nas aldeias do Norte, pelo menos, há muitos anos, costumava dizer-se exatamente assim: desfazer a barba…

  • Achei deliciosa a sua observação. Em rigor, num Mundo como o que George Orwell descreve no seu “1984”, deveria ser banida a expressão “fazer a barba”.
    Ela é oposta à acção que se efectua quando nos escanhoamos. Só que se entranhou de tal forma no nosso léxico diário que, combatê-la, me faz lembrar D. Quijote investindo contra os moinhos de vento da Mancha.
    Aliás, nenhum de nós acredita que alguém que nos detesta nos queira “fazer a cama”, no sentido de nos poupar esse trabalho de manhã, depois de nos levantarmos…

    • Fazer a cama…Também achei delicioso o seu comentário…e lembrei-me agora de mais um fazer e de mais uma barba:

      A barba não faz o filósofo assim como o hábito não faz o monge….

      O filósofo e o monge não fazem a barba…

  • Erro ou não ?1 Se calhar não será o mais importante1 Para mim é mais uma expressão idiomática como tantas outras que encontramos não só na nossa língua, mas em todas as línguas e que lhes confere uma riqueza extraordinária. Mas ,voltando à expressão “fazer a barba”, ela é mais comum no centro e sul deste nosso cantinho. Ora, no Minho, utiliza-se a expressão “desfazer a barba” , porque – e eu acho-lhe uma certa lógica – o pêlo desaparece mediante o efeito do objecto cortante, exterior ao sujeito.
    Um abraço.

    • Muito interessante, deu-me uma ideia: talvez desfazer a barba fosse quando se raspava a barba, outra expressão muito utilizada, já fazer a barba talvez fosse mais a respeito de aparar a barba (outra expressão bastante usada), apenas acertar uma barba comprida… e esta de acertar uma barba??? Ou será a
      certar na barba?…. hehe

    • Não me deixaram comentar porque parece que já foi dito o que eu dizia… hehe o que importa é que foi dito!

  • Considero que a expressão ‘fazer a barba’ terá nascido antes de a barba desaparecer por completo dum rosto. Passo a explicar. Fazer a barba seria deixá-la aparada como uma sebe e com os contornos desejados no pescoço e na face. O seu possuidor ostentaria uma barba feita a preceito, como desejara. No entanto, se o acto de a ‘fazer’ for levado ao limite de cortar a maioria mas não todos os pêlos, diremos que a barba está mal feita. Por isso, ‘fazer a barba’ é sempre cortar a barba. Muito ou pouco, tudo ou quase nada…

    • Concordo. Por isso desfazer a barba seria eliminar, raspar a barba (outra expressão também usada em português, mais no Brasil) completamente.

  • Se calhar, há que explicar a estes falsos puristas da língua o que são expressões idiomáticas, para verem que não passam de “chico-espertos” armados em linguistas feitos à pressa, julgando que podem mudar o sistema de uma língua que vai evoluindo ao longo do tempo…

  • Helena Galvão foi um pouco dura, não? Na sua opinião só os piristas podem dialogar. E quem tem interesse em aprender alguma coisa, não?

    • Eu não sou de todo purista da língua, Fernanda, bem pelo contrário. Purista é aquele que não aceita inovações na língua. Eu estou aberta às mudanças, às inovações, coisa que o opinador que deu origem ao texto do Marco Neves não é… Claro que ele não só pode como deve aprender alguma coisa, principalmente antes de criticar quem realmente sabe…

  • Este texto e os puristas fizeram-me lembrar os meus alunos chineses, que levam tudo à letra, e por isso tantas das expressões que usamos, e que para eles não se enquadram na lógica, estão erradas: por isso consideram que sabem muito mais da nossa língua, mesmo anda escrevendo e falando bastante mal… hehe

  • Melhor mesmo é que todos os caçadores de erros lessem o maravilhoso conto de Vergílio Ferreira “A Palavra Mágica”: é o dicionário que emenda a vida ou é a vida que emenda o dicionário?
    “Fazer a cama”, “fazer a folha”, “copo de água” ou “saco de batatas” são tudo erros, dizem eles! “Queria um café, por favor!” também é erro. E “queria pagar a conta!” também será erro?
    Mesmo depois de feita, a barba continua lá, para quem a tem, claro! Portanto, fazer a barba é cortar os pelos, porque a barba continua. Ou será também grande asneira dizer, mesmo de alguém bem escanhoado, que é um homem de barba rija?

  • “Fazer a barba”? Expressão utilizadíssima no Brasil.
    Aliás, aqui no Brasil não fazemos apenas a barba, mas também o bigode, o cabelo, as mãos e os pés! É preciso explicar locuções como “fazer o bigode”, “fazer o cabelo”, “fazer as unhas”, “fazer mão e pé” etc.? Creio que não.
    Temos também a locução “fazer barba, cabelo e bigode”, usada, por exemplo, quando uma equipe esportiva conquista todos os torneios ou troféus que disputa numa temporada.
    Se o Benfica – imaginemos – conquistar todos os torneios de uma temporada, ou se se sagrar campeão de uma competição e, de quebra, tiver o artilheiro dela e o melhor jogador, melhor goleiro etc., terá “feito barba, cabelo e bigode”.

  • Seja como for, o meu avô já fazia a barba, o meu pai também a fazia e eu continuarei a fazê-la. Aliás, nem gosto que me corrijam e me digam que eu vou é desfazer e não fazer a barba. Não significa isto que por vezes não me saia a expressão, cortar a barba.

  • Não sei se me deveria inscrever! Tenho 66 anos e ainda hoje vivo preocupado com a escrita por ter sofrido tanto quando era criança/jovem!
    Mas sinto-me, de alguma forma, inclinado a aceitar o desafio!

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