Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

O ódio às palavras dos outros (ou o que fazer quando encontramos uma palavra desconhecida)

196H (2)

Encontramos uma palavra desconhecida num título duma notícia. O que fazer? Assim de repente, vejo duas hipóteses:

  1. Tentar perceber o que quer dizer a palavra e ficar satisfeito porque passámos a conhecer mais um pouco sobre a nossa língua.
  2. Armar um escândalo porque há quem use palavras que nós não conhecemos.

Ora, foi o que aconteceu ontem num dos posts do Observatório da Asneira.

Alguém encontrou a palavra «detento» num título duma notícia brasileira. Como não conhecia tal palavra, supôs que fosse erro e partilhou no Observatório. E foi um festival de comentários indignados com o tal «detento»…

Ora, eu também não conhecia a palavra. Mas não tenho essa tendência de achar que tudo o que eu não conheço só pode ser asneira. Vai daí, aprendi isto: «detento» é uma palavra que significa «detido». É usada no Brasil, pelos vistos. Está nos dicionários, o que não quer dizer tudo, mas quer dizer alguma coisa. E, reparem, tem uma impecável origem latina.

Ah, mas não pode ser! Se eu não conheço, não pode ser! E surgiram reacções como estas:

  • «Eu, se fosse “detento” evadia-me só para não me chamarem essa barbaridade.»
  • «Nojice de termos, esta trampa nunca poderá fazer parte da nobre Língua Portuguesa!»
  • «Os presídios podiam ser ocupados com os assassinos da Língua Portuguesa!»

Querem reacções mais desproporcionadas do que estas? É difícil…

Ah, mas se alguém tenta argumentar, então sim vêm as acusações de falta de proporção.

Pois, vejam: Fernando Venâncio, algo irritado com aquela arrogância toda, pediu para que todos tivessem… juízo!

Resposta? Que pedir juízo era falta de respeito e que mostrava pouca educação e mais isto e aquilo. Acabou tudo em bloqueanço, que é uma táctica sempre bonita.

Reparem: primeiro, os indignados caem em paroxismos de revolta só porque encontraram uma palavra desconhecida. Alguém pede juízo (ai, credo!). E toca de atacar quem pede tal alarvidade porque está a… exagerar!

Estes episódios não seriam importantes se não fossem tão frequentes. As discussões sobre a língua caem nisto vezes sem conta. Nisto, o quê? Num moralismo mal pensado e numa certa arrogância de quem não vê para lá daquilo que já sabe.

Apetece-me perguntar, inflamado por tanta retórica: onde fica o respeito pelos outros, onde fica o benefício da dúvida? Onde fica o prazer de aprender palavras novas, mesmo que sejam as palavras dos outros?


Ainda há pouco um leitor habitual do blogue me perguntava: não estarei a combater moinhos de vento? Sim, é possível. Esta luta entre uma visão catastrófica da língua e uma visão um pouco menos complexada é de todos os tempos e não tem fim. Mas faz-se em cada um de nós. Todos podemos ter uma visão mais fechada ou uma visão mais aberta. Não espero que os discursos do tipo que descrevo acima desapareçam, por mais artigos que eu e outros escrevamos por aí. No entanto, já tive algumas pessoas que, depois de ler um ou dois artigos deste blogue (ou ainda o livro), me disseram ter ficado mais esclarecidas sobre alguns aspectos da língua — ou pelo menos ficaram mais bem-dispostas. Pode parecer pouco, mas a mim basta-me. Espero eu que, para lá do esclarecimento e da boa disposição, tenham ficado com mais vontade de sentir prazer com a língua portuguesa, ou seja, com o que lêem e com o que ouvem. Porque esse é o grande perigo da visão purista da língua: ficamos obcecados com os erros e esquecemo-nos do que é muito bom e também existe por aí.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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9 comentários
  • Mas o Marco ainda frequenta esse ninho de víboras? Gabo-lhe a paciência, aquilo transborda de veneno e ódio. Posso indicar-lhe um grupo mais simpático, quiçá com menos movimento (“eu distingo comeste de comes-te”). A menos que queira que aquelas criaturas aprendam mesmo alguma coisa, mas a grande maioria acha que já sabe tudo.

  • Pior que o desconhecimento da palavra, é uma aparente intenção premeditada de atacar o português brasileiro por ser brasileiro.

  • Depois de ter lido alguns artigos publicados em “Certas Palavras” e o livro “Doze Segredos da Língua Portuguesa”, tenho que concordar com as teses do autor, a propósito das “novas” alterações da Língua Portuguesa.
    Na minha opinião, assim como os norte-americanos dizem “whiskey” e os britànicos dizem “whisky”, os brasileiros poderm chamar “terno” a um fato (a que nós chamamos “fato”).
    E porquê esta mania de querer unificar as coisas com o Brasil?
    Porque eles são mais numerosos? Porque eles cantam bem? Porque são bons em futebol?
    Reparem: nós temos aqui ao lado um país chamado Espanha, onde a línguia oficial é o Castellano (e não o Espanhol, como dizem os idiotas de Bruxelas).
    Essa língua, que originou o Gallego, de onde surgiu o Português, aina hoje não se deixa contaminar por aquilo que se fala e escreve nos países da América Central e do Sul.
    E nós, porque vergamos a cerviz?
    Se calhar, D. Afonso Henriques andou a perder tempo para tornar “isto” inependente…

    • Caro Marco,

      O Eduardo Augusto Neves e Melo leu alguns artigos do seu blogue e o seu livro, mas não entendeu muita coisa ou mesmo nada: “Essa língua, que originou o Gallego, de onde surgiu o Português, aina hoje não se deixa CONTAMINAR por aquilo que se fala e escreve nos países da América Central e do Sul. E NÓS, PORQUE VERGAMOS A CERVIZ?”.

      O seu comentário está pejado de ideias de pureza linguística.

    • Caro Eduardo, o castelhano não originou o galego. «Nasceram» à vez com outros línguas, na Iberia tem o galego-português, o astur-leonês (daí vem o mirandês), o basco, e o catalão.

      As outras nações que estão dentro da Espanha querem fugir. Quando fala da independência de Portugal, penso no Franquismo ou em como Galiza sofreu quando Isabel ganhou a guerra civil contra Joana. Portugal também apoiou a Joana. Se Portugal tivesse ficado se calhar tivera tivera sofrido o mesmo que a Galiza na altura e hoje em dia, seria tão colónia como o é hoje a Galiza.

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