Um leitor (que devia estar irritado com o mundo) deixou-me um comentário um tanto a dar para o agressivo, acabando por dizer que eu andava por aí a assassinar a língua. Eu abri a boca de espanto: fogo, essa ainda não tinha ouvido.
Ora o que fiz eu para merecer tal acusação? Isto: escrevi um artigo a defender que as mulheres podem usar a palavra «obrigada».
Ora, o tal leitor não gosta dessa ideia. Para ele, uma mulher tem de dizer «obrigado» e acabou. Vai daí, chama-me assassino da língua.
O que devia eu fazer perante um comentário tão impertinente? Três ideias:
- Aceitar a acusação e concordar com o leitor mal-disposto. Pronto, fique lá com a bicicleta: eu, ao dizer que as mulheres estão no direito de dizer «obrigada» e não «obrigado», estou mesmo a matar a língua! Bato então com a mão no peito e deixo de escrever sobre estas coisas, porque afinal a verdade revelada é só uma. Só fico com esta pergunta atravessada: o que devo dizer àquelas mulheres portuguesas que falam e escrevem bem e preferem dizer «obrigada»? Devo repreendê-las? É que ainda são muitas.
- A segunda hipótese seria cair no erro habitual da hipérbole e da discussão à estalada. Se seguisse esta opção, bastava dizer que eu tinha razão e ponto final e insultaria o leitor irritadiço com verve. É giro.
- Chego à terceira e mais difícil hipótese: ignorar o insulto e tentar explicar que o leitor tem uma parte de razão. Há algo que escapa a muitos dos que falam desta questão em particular: a palavra «obrigado» é usada como interjeição. Sendo interjeição, uma mulher pode mesmo dizer «obrigado». Mas depois temos de continuar, que isto não se explica à estalada: é habitual ouvir muitas mulheres a dizer «obrigada». Porquê? Talvez porque a origem da interjeição é uma forma verbal variável. Ou talvez porque houve um mecanismo de hipercorrecção que acabou por mudar a língua na cabeça de muitas pessoas. Ou até porque, se formos a ver bem, a nossa língua tem duas interjeições sinónimas que todos podemos usar: «obrigado» e «obrigada». Ora, também é verdade que muitos estão convictos de que dizer «obrigada» é a única opção correcta para o sexo feminino e ficam horrorizados ao ouvir uma mulher a dizer «obrigado». E agora apareceu-me um leitor que fica horrorizado com o «obrigada»… Suspiro.
O que fiz então perante aquele comentário? Não, não ignorei o insulto, mas tentei explicar a minha posição: uma mulher pode dizer «obrigada», mas também pode usar a bela interjeição «obrigado». Sim, há variação no uso desta palavra. Isto não é dramático: é assim em muitos outros casos da nossa língua portuguesa, que não se dá bem com regras simplistas. A língua não é apenas aquilo que cada um de nós tem na cabeça. É qualquer coisa de muito complexo, variável e difícil de perceber. Mas tentamos, tentamos sempre…
Disse o que acho sobre a questão, mas aceito que outros pensem de forma diferente. É exactamente porque a língua é complexa que é aconselhável ter alguma calma antes de acusar os outros de malfeitoria sem perdão.
O clubismo nas discussões sobre a língua
Esta história toda ajuda-nos a perceber isto: em certos pontos quentes da língua (o «obrigada» é um exemplo, tal como o uso do «porque», entre muitos outros), temos clubes rivais. Os sócios dos dois clubes preocupam-se todos com a língua, alguns até estão muito bem informados, mas estão convencidos que o outro lado é ignorante — porque não vê as coisas exactamente da mesma maneira.
Neste caso, temos uma das bancadas a gritar: «As mulheres têm de dizer “obrigada” e ponto final!».
Do outro lado: «As mulheres têm de dizer “obrigado” e ponto final!»
As duas frases são ditas pelos dois clubes com o mesmo olhar febril, como se a simples menção da ideia contrária fosse um crime de lesa-língua. Depois, viram-se todos para o árbitro para que ele decida.
O problema é que uns acham que esse árbitro é a lógica. Outros acham que é um livro qualquer que têm lá em casa. Há uns quantos que julgam ter o árbitro na cabeça. Pois o único árbitro a que podemos recorrer é o uso real da língua, mas para analisar esse uso é preciso muito trabalho e respeito pelos falantes (e algum interesse pelo trabalho dos linguistas).
Bom seria perceber que a gramática duma língua não é um jogo com regras simples definidas à partida e para todo o sempre (era bom, era) nem muito menos uma guerra. Embora, às vezes, pareça…
Agora, para terminar, pergunto: o que acontece quando alguém se atreve a dizer que, por vezes, nestas contendas da língua, os dois lados podem ter alguma razão? Leva porrada das duas claques, claro.
A posição do leitor (que devia estar irritado com o mundo) parece-me indefensável. Mas a resposta do autor do blogue parece-me muito pouco convincente, apesar de ficar de bem com Deus e com o Diabo, o que raramente é possível. Ou será que “obrigado”, no sentido aqui discutido, seja como adjectivo ou como interjeição, não é sinónimo de “agradecido” ou “grato”? Veja-se, por exemplo, o VOCABULÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA, de F. Rebelo Gonçalves, Coimbra Editora, Lda, 1966-
Falantes muito cuidadosas do português há muitas décadas que usam «obrigado» como interjeição (e, como tal, invariável como todas as interjeições). Ainda há poucas semanas conversei com uma professora cultíssima, de português impecável, que se queixava dessa mania do «obrigada!». Muitas outras falantes, também elas cuidadosas, usam «obrigada» como forma verbal sinónima de «agradecida» ou «grata». Ora, nisto, não sou eu que digo ou decido, apenas descrevo a situação e o uso das falantes de português-padrão. Mas, como descrevo no texto, uma descrição pormenorizada e cuidadosa da questão parece não agradar a ninguém. Aquilo que quase todos queremos é certezas: tem de ser assim OU assado, nunca pode ser das duas maneiras. No entanto, em certos pontos da língua, a gramática admite duas ou mais soluções. É assim neste caso e não fico aborrecido por ser pouco convincente. Neste artigo, não estava a tentar convencer ninguém: apenas a criticar o exacerbado clubismo que sinto em muitas questões linguísticas.
Não vejo mal nenhum em que uma pessoa queria convencer outra, principalmente numa troca de pontos de vista discordantes (primeiro entre um leitor que devia estar irritado com o mundo e o autor do blogue, depois entre o autor do blogue e um leitor que não está irritado com o mundo – eu – mas se interessa por estas questões). Mas adiante. Percebo agora que estamos a falar de duas coisas diferentes:
1ª O uso de um adjectivo verbal como interjeição, uso esse que lhe imporia a invariabilidade (“como toda as interjeições”).
2ª O uso de um adjectivo verbal como adjectivo verbal, logo dispensado da invariabilidade que a condição de interjeição lhe imporia.
Será assim?
Se é, independentemente daquilo que “quase todos queremos” (fórmula vaga), o leitor que devia estar irritado com o mundo tem toda a razão se estiver a referir-se ao tal uso de “obrigado” como interjeição, mas não tem razão se estiver a referir-se às situações, incomparavelmente mais frequentes no falar e escrever quotidiano, em que “obrigado” é usado como “agradecido”, “reconhecido”, “grato”, etc.
Seja como for, um problema interessante, que não pode, no meu modesto entender, depender apenas de uma estatística do número de falantes mais ou menos cuidadosos do português que há muitos anos usam “obrigado” como interjeição. Não é uma questão de usá-lo como uma coisa OU como outra, é uma questão de usá-lo correctamente como uma coisa OU como outra. Da mesma forma que não se trata de não se ficar aborrecido por não se ser convincente. Trata-se antes de se tentar ser convincente, mormente tratando-se de alguém, como o autor deste blogue, com responsabilidades académicas, professor universitário de Tradução e autor de dois livros sobre sobre a Língua Portuguesa.
Caro Francisco,
Muito obrigado pelo comentário cuidadoso. Posso tentar explicar a minha posição.
Na grande maioria das situações do quotidiano, todos nós dizemos a palavra «obrigado» como agradecimento. Por exemplo, quando dizemos, ao receber um café no restaurante, «obrigado!» É dessas situações que estou a falar.
Ora, muitos linguistas, ao olhar para esta questão, notam que muitas mulheres usam a palavra na sua forma invariável (só um exemplo, entre muitos: https://www.flip.pt/Duvidas-Linguisticas/Duvida-Linguistica/DID/1008).
Ou seja, o que os linguistas reparam é nisto: muitas mulheres que dizem sempre «estou agradecidA» usam, efectivamente, «obrigadO!» em situações como as descritas acima. Muitas outras preferem usar a forma variável, no feminino. Ora, o objecto do estudo da linguística só pode ser a língua real. Se estivermos a falar do português-padrão, temos de olhar para o uso da língua em situações formais por falantes chamados pelos linguistas (talvez de forma imprecisa) «falantes cultos». E aí encontramos esta variação: mulheres que dizem «obrigado», embora nunca digam «agradecido» e outras que dizem «obrigada». Preferia que eu escolhesse a forma mais correcta? Os anos de estudo da língua impedem-me de me atrever a tal. O que reparo é nesta variação real entre os falantes cultos da língua.
Há outro fenómeno interessante nesta questão. Muitos dos que defendem que a forma correcta do agradecimento, para uma mulher, é «obrigada» também defendem que um grupo deve usar «obrigados» (aqui, por exemplo: http://porticodalinguaportuguesa.pt/index.php/duvidas-da-lp/dificuldades/item/obrigado-ou-obrigada-2). No entanto, a forma plural já é sentida por muitos falantes como errada (é o meu caso). Por isso, o que temos, na minha opinião, é uma palavra que começou como forma verbal e tem vindo a transformar-se, progressivamente, numa interjeição: as formas do plural já praticamente não se usam e a forma do feminino está em decadência, havendo uma grande oscilação no seu uso. Mas, como disse, admito que esteja a ver mal a questão.
Seja como for, o que me parece de lamentar é que alguém (o tal leitor original) parta para o insulto por causa duma questão que é complexa. Também confesso uma coisa: sei, por experiência, que optar por uma solução quando a língua está num processo de transição e, a partir daí, criticar todos os que não seguem a nossa opção na sua produção oral e escrita é bastante mais fácil do que tentar explicar a situação que tentei fazer neste artigo.
Espero também que a minha descrição do caso não seja interpretada como falta de responsabilidade (digo isto porque refere as minhas responsabilidades académicas). É bem mais complexo e relevante explicar estes fenómenos sócio-linguísticos do que dizer «é assim e acabou». A linguagem é complexa e o seu estudo não se dá bem com simplismos (de que os seus comentários, diga-se, não padecem). De qualquer forma, para não ficar no ar algum medo neste ponto, posso dizer que, a um aluno ou aluna que me perguntasse, diria algo deste género: grande parte dos «manuais de etiqueta» da língua aconselham a que uma mulher diga «obrigada!» ao agradecer e, assim, será essa a opção aconselhável quando estamos a traduzir. Por outro lado, toda a explicação acima seria uma boa maneira de introduzir os alunos à complexidade da sócio-linguística.
Quanto aos dois livros que refere, o artigo acima não foge daquilo que tentei fazer no primeiro: discutir a língua, explicar alguns pontos do estudo linguístico actual, fugindo ao insulto e criticando a tendência para uma discussão feita em torno de ideias-feitas e erros inventados. Porque a verdade é esta: no comentário linguístico, talvez por via de muita insegurança, o que muitos leitores procuram são listas de erros, para ver se não tropeçam nas armadilhas. Defendo que seria muito bom desarmadilhar a língua. Todo o primeiro livro vai nesse sentido e por isso tudo o que digo neste artigo não foge a essa responsabilidade de defesa dessa minha visão da língua (minha e não só, claro está).
Espero tê-lo esclarecido e espero ainda que esta discordância não o afaste da leitura dos restantes textos deste blogue.
Cumprimentos sinceros
Marco Neves
Muito Bom!Obrigado Marco Neves
Muito obrigada pelo debate. Por mim vou continuar a dizer obrigada.
Já agora, há uns anos aprendi, não sei se de forma correta ou não, que a palavra personagem era sempre no feminino. Ora, oiço muito dizer “o personagem” quando se referem a uma entidade masculina. Nada que me faça arrelia ser feminino ou masculino, gostava só de entender.
Esperança Marreiros