Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

História dum desaguisado luso-brasileiro: quem manda no texto é o leitor?

196H (2)

Há uns anos, escrevi noutro poiso uma primeira versão do texto que podem encontrar aqui. Nessa primeira versão, o texto tinha o atrevido título: «O português do Brasil aleija os portugueses?» Era, como é fácil de perceber, uma diatribe contra os portugueses que acham o português do Brasil ofensivo.

O texto levou com uma tempestade de comentários. Ainda hoje por lá caem uns quantos. Houve de tudo, pessoas ofendidas, quem argumentasse isto e aqui (o que é bom), houve quem tivesse concordado, quem começasse a insultar porque não gostou do que outros disseram…

Nada de muito diferente do que acontece todos os dias em muitos blogues, quando o assunto é minimamente polémico.

O que me interessa agora chamar para aqui é um comentário dum leitor que se sentiu a pergunta do título como sendo «discriminatória». Volto a lembrar: o título era «O português do Brasil aleija os portugueses?»

Tudo começou quando caí no disparate de reagir a um comentário que me parecia preconceituoso e redutor em relação aos portugueses, denominando tal comentário de «tacanho» — e ainda expressei a minha estranheza por ver um comentário «anti-português» escrito com todos os «c» e «p» da ortografia portuguesa. Parecia uma trollada dum português a tentar fingir-se brasileiro a atacar os portugueses (sim, há malucos para tudo por essa internet fora).

Bem, disse, então, o tal leitor assim atacado:

Tacanho é o título da matéria. Discriminatório, inclusive. Provocativo, também. O português do Brasil “aleija” os portugueses? Seria qual o sentido da mutilação?

Ora, respondi-lhe que a pergunta era irónica…

Respondeu-me de novo o comentador: 

Ironia com brasileiros não é difícil de encontrar na vida real em Portugal. Inclusive na acadêmica. Mas, quando o público destinatário é mais letrado, os portugueses gostam muito de falsear a discriminação com um tom dissimulado. Talvez resultado do complexo paroquial no cotidiano luso. Antigos cidadãos de primeira classe, não é fácil descer para o segundo andar da pirâmide social.

Ou seja, o leitor achava que eu estava a ser dissimuladamente irónico com os brasileiros. Nada mais longe do post original, como é fácil perceber, bastando para isso lê-lo.

Disse-lhe:

Chegou a ler o post original? Era dirigido à ultra-sensibilidade dos portugueses e é descabido achar que é um ataque aos brasileiros. Leia o post com atenção e perceberá a ironia do título. Não tente encontrar ofensas onde elas não existem.

O leitor talvez tenha ido então ler o texto e respondeu:

Finalizo: não há ofensa, de fato. Nem tampouco ironia. Deboche? Estaria eu, erroneamente, a exagerar. Deve conhecer o sentido de “reversibilidade em psicologia”. Se não. Pergunte. Ou aceite a minha sumária explicação: pôr-se no lugar do outro. Last, but not least: quem escreve e publica deve ter em conta que o destinatário é que é o juiz do texto. Conforme-se, ou escreva e guarde. Mostre aos amigos. Não se exponha à crítica.

Ou seja, se eu quero escrever para o público, tenho de comer e calar no que toca aos comentários dos leitores. E, sim, admitia agora o comentador, se calhar eu não tinha ofendido ninguém, mas ironia é que não estava lá, porque ele não tinha visto, o leitor é ele, o leitor é que manda, ponto final.

Bem, comi, mas não calei. Respondi:

Sim, o destinatário é o juiz do texto — e por vezes o juiz não percebe o que tem à frente. Os comentários também são passíveis de julgamento… Neste caso, num texto dirigido contra os portugueses que se sentem ofendidos com textos noutra variante do português, achar que há aqui sobranceria anti-brasileira é um erro de interpretação. Ao leitor não basta dizer “eu acho que é assim”. Convém ler com atenção e tentar não assumir o que no texto não está. A pergunta do título tem de ser vista no contexto do texto do post — e não é, de todo, sobranceira ou ofensiva ou o que for: é uma pergunta irónica, no sentido: “porque se chateia tanto em ler em português do Brasil? Será que aleija?” E a resposta é óbvia: claro que não aleija. Por isso, a ofensa retratada no texto não tem sentido. Achar-se ofendido com o título é cair em erro semelhante ao do episódio retratado no post…

(Depois ainda houve mais umas respostas, mas já em tom cordial.)

A questão é esta: será que, uma vez publicado um texto, temos de aceitar todas e quaisquer interpretações?

Bem, quem escreve, em geral quer ser compreendido (nem sempre, mas faz de conta), e deve ficar preocupado se os leitores interpretarem tudo ao contrário. A culpa será, provavelmente, do texto e do seu autor. Não vamos entrar na atitude de quem anda ao contrário na auto-estrada e diz: «estes gajos estão todos em contra-mão!»

Mas, por outro lado, não podemos achar que um leitor pode interpretar o que bem entender dum texto. O leitor deve tentar perceber o texto — digamos que o texto tem dois lados e há um esforço a fazer de ambos os lados. Há que ter um mínimo de boa-fé ao ler os outros.

Ora, por essa internet fora, a tendência é, muitas vezes, interpretar os textos da forma mais insultuosa possível. Se vemos um post que não reflecte a nossa exacta opinião, partimos logo para a indignação, para as respostas inflamadas, para o dedo em riste, sem fazer o mínimo esforço para compreender os argumentos do texto. Não damos uma segunda ou terceira oportunidade — para dizer a verdade, por vezes nem a primeira oportunidade é oferecida ao texto. Basta ver quem escreve, ler o título ou uma linha e meia, e tiramos logo as conclusões necessárias para ficarmos indignados.

Acho mesmo que andamos viciados em indignação — o que só pode ser negativo, porque precisamos da indignação bem forte para aquilo que, de facto, a merece.

O tal comentador, quando viu o título acima, supôs logo que seria um insulto aos brasileiros — porque acha que é isso que vai encontrar num blogue português. Interpretou o texto da pior forma possível — e quando lhe disse isso, afirmou que o leitor é soberano, e pronto.

O leitor é soberano, sim senhor, mas convém ser um soberano esclarecido e, quiçá, democrático — deve dar oportunidade à leal oposição de se exprimir.

Se não quiser chegar a um ponto de encontro entre a sua leitura e o texto real, acabará sempre por ver coisas onde elas não estão, sentir-se-á insultado quase sempre e, por fim, termina a ler num mundo bem diferente da realidade.

O que proponho é que demos oportunidade aos outros: ou seja, que partamos para a leitura de textos (na internet e não só) com menos pedras na mão e admitindo a hipótese de o autor não ter escrito o que estamos a ler para nos insultar a nós pessoalmente.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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