Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

As histórias de Hillary e de Trump

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Não há nada mais potente do que as histórias com que explicamos o nosso mundo.

Muitos andam a questionar-se como é possível que alguns eleitores americanos não se tenham horrorizado com aquilo que Trump dizia — até porque ele parecia estar a esforçar-se para provocar e horrorizar jornalistas, leitores de jornais e espectadores de programas de humor político (o que, cá em Portugal, inclui praticamente todos os que se interessam pela política norte-americana).

A verdade é que todas essas provocações alimentavam uma narrativa: há uma classe corrupta e depois temos este homem que diz a verdade («tell it like it is»). Trump percebeu isso. Mesmo quando, no segundo debate, elogiou a adversária (naquela última pergunta em que disse que ela era forte e determinada), usou a frase: «I tell it like it is.»

Todas as provocações alimentavam a narrativa do homem que já tem tudo e por isso pode dizer tudo.

(Já agora, uma digressão que me parece interessante. Esta mesma narrativa permitiu a Trump um feito muito curioso: ele consegue ser o candidato menos religioso que os americanos — e logo os mais religiosos dos americanos! — alguma vez se atreveram a eleger. Obama e Hillary trazem Deus à liça sempre que podem. Trump não quer saber. He tells it like it is. Com Deus ou sem Deus.)

Os jornalistas e humoristas e todos os que o atacavam pelas afirmações objectivamente pavorosas que ele ia deixando cair (o ataque a McCain pareceu-me duma deslealdade a toda a prova) também iam alimentando a narrativa: «Ah, olhem para mim a enervar os bem-pensantes! Não sou politicamente correcto! Digo as coisas como elas são!» Cada ataque a Trump era mais uma acha para a fogueira. Trump podia dizer tudo e nada. Não importava. Estava a enervar os outros. E, ainda por cima, queria reverter a decadência da América — queria voltar aos bons velhos tempos. Uma outra história muito, mas mesmo muito poderosa.

Sim: são emoções. E são emoções dos dois lados. Os democratas tinham a narrativa da primeira mulher presidente e da candidata mais preparada de sempre. Podem dizer-me: sim, mas isso são factos! Ora, sim, mas não é disso que estamos agora a falar. O que estou a sublinhar é que nesta luta de narrativas, a de Trump era mais resistente, porque se alimentava das próprias gafes do candidato — e conseguia também alimentar-se dos defeitos da adversária sempre que estes vinham à luz. Os e-mails alimentavam a narrativa de Trump e eram uma distracção do lado de Hillary. Já os defeitos de Trump alimentavam a sua própria narrativa.

Mais: Trump só precisava de fazer isto no eleitorado de alguns estados específicos. Foi o que fez, de forma mais ou menos consciente. Os estados em que a narrativa da decadência está mais presente, onde a nostalgia por um passado melhor é mais forte.

Sim, porque a eleição do presidente norte-americano não se faz contando os votos totais — se assim fosse, Hillary teria ganho (como de facto ganhou, pois teve mais votos do que Trump no cômputo geral). Não: os sítios onde a narrativa dela mais emocionava a população eram os estados que ela teria ganho de qualquer maneira, aqueles onde nenhum dos candidatos fez campanha: Nova Iorque, Califórnia e estados nas redondezas. Aqueles estados onde vivem os jornalistas. Os estados com os quais os europeus mais se identificam.

(Não vou esconder: dentro desse caldo de ideias e histórias, a possibilidade de a eleição de Hillary promover a confiança das raparigas e melhorar, por pouco que fosse, o desequilíbrio entre os sexos parecia-me importante. Mas, lá está, cada um tem as suas histórias e olha para estes concursos de determinada maneira.)

E assim a história da campanha de Hillary, para os seus apoiantes (americanos e europeus), acabou com um final absurdo. Lembro-me do Euro 2004: tudo parecia indicar, por cá, que daquela vez é que era. Parecia um filme! O país que nunca tinha ganho iria ganhar em casa. No fim, o enredo parecia absurdo. Tudo parecia aleatório. A nossa narrativa não tinha chegado ao fim natural. Nuno Markl disse-o na altura: porra, isto foi um filme em que os bons morrem no fim! Claro que os gregos não concordariam com a descrição do que se passou, mas, lá está, estas narrativas combatem-se umas às outras sem perceber que o outro lado também tem uma história a contar.

Estou a misturar coisas que não devem ser misturadas? Sim, a eleição dum presidente norte-americano é bem mais séria do que a vitória num campeonato desportivo. Mas os mecanismos mentais com que encaramos campanhas e campeonatos, o tribalismo e narrativas associadas não são assim tão diferentes — independentemente das consequências.

Há, depois, os factos. Aquilo em que podemos tentar concordar uns com os outros. Mas têm pouca força, perante a força das histórias com que interpretamos o mundo. Não estou a dizer que devemos desistir: há que insistir em olhar com mais objectividade para o mundo. Podemos tentar complicar um pouco as histórias que temos na cabeça, olhar para vários lados, procurar aquilo que nos contraria, para conseguirmos uma imagem um pouco mais completa do mundo. Podemos tentar compreender, mesmo sem concordar. Fazer isto e não perder a paixão pelas nossas ideias é complicado. Ser rigoroso e continuar a bater-se por aquilo em que acreditamos é difícil, quando temos de ter sempre em mente que podemos estar errados. Mas não há volta a dar. Ou melhor, há uma volta a dar: tentar reduzir um pouco o nível de agressividade e diminuir a distância que nos separa dos outros. Todos podemos defender ideias tentando desprezar o menos possível aqueles que não concordam connosco.

Sabem o que ajuda? Parece um pouco contraditório, mas aqui ficam as sugestões. Ler muito. Pôr várias hipóteses em cima da mesa. Testar o que pensamos. Olhar para os números e para os factos. Imaginar como é o mundo visto pelos olhos de quem não compreendemos. E, já agora, não desistir de lutar por um sistema que permita gerir todas as histórias e emoções de forma o mais pacífica possível, mesmo quando aqueles de quem gostamos perdem — depois, dentro desse sistema, podemos lutar por outros objectivos, mais concretos, o que terá de ser feito sempre num caldo de histórias, emoções e muitos enganos. Sim, estou a falar da democracia. É difícil e, às vezes, parece mais frágil que esses outros sistemas em que há uma narrativa comum e embriagante em que todos participam, queiram ou não — daquelas narrativas tremendas que, de vez em quando, acabam em grandes tragédias. Mais vale as pequenas tragédias das eleições perdidas.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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1 comentário
  • Pois eu já estava a ficar mais que farto dos ataques ao homem.

    De tal forma que percebi perfeitamente porque foi eleito.

    Foi eleito por quem já está mais que farto de ser “emprenhado” pelos “jornalistas” e “opinion makers” deste mundo.

    Tal como o Bexit. Tudo o que é demasiado demonizado, acaba por criar desconfiança de que nos estão a tentar “fod..-er”.

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