As minhas aulas de condução foram inesquecíveis, por boas e por más razões. Comecemos por estas últimas: lembro-me de ter deixado o carro ir abaixo, ao mesmo tempo que, num só milagroso gesto, ligava tudo o que havia para ligar: os limpa-pára-brisas, os máximos, o rádio e o pisca. E a buzina. Tudo ao mesmo tempo.
O meu instrutor olhou-me por cima dos óculos escuros, sem acreditar no que acabara de ver. Mas aprendi a conduzir: é essa a boa notícia. E, ao contrário do que esperava, gosto mesmo muito de ter um carro nas mãos.
Ora, uma das lições do instrutor, que tinha uma tendência para se distrair com quem passava na rua, desde que fosse do sexo feminino, deixando-me sozinho a olhar para a estrada — dizia eu que uma das suas lições bem concretas foi esta: se quero conduzir bem, tenho de olhar lá para a frente. Não devo olhar para o pedaço de estrada que está à frente do carro. Nem muito menos passar o tempo a espreitar os instrumentos do carro (bem, às vezes convém). Enfim, tenho de olhar para onde estou a ir, em frente, sem medo.
Parece óbvio, não é? Mas não: quem está a aprender tem tendência para olhar para o que está à sua volta, com medo de se esquecer de alguma coisa. Tem também tendência para olhar para a estrada que está mesmo à frente do carro, quando na verdade tem de esticar o olhar para o horizonte. E temos de estar à vontade com o carro para controlá-lo e conduzi-lo sem olhar para as mãos. E temos ainda de ter olhos para tudo: para a estrada, mas também para os espelhos e para os instrumentos (de vez em quando).
Depois, obviamente, chegamos a um cruzamento, temos de parar, olhar com atenção para todos os lados — temos de adaptar a condução à situação em que estamos. Já quando precisamos de chegar depressa ao hospital, com uma emergência no carro, tudo muda. Não convém estar preocupado com o código da Estrada. Enfim: conduzir é muito mais do que saber as regras. Ninguém aprende a conduzir a empinar livros de código (mas também tem de o fazer).
Bem, já estou a ir por atalhos que quero deixar para depois. Deixem-me lá olhar em frente e dizer o que queria dizer: para escrever bem temos de saber para onde queremos ir e avançar, confiantes, conhecendo a fundo a máquina que temos nas mãos.
Esta é a primeira ideia das várias que vou aqui deixar ao longo de várias semanas.
Aprendemos a escrever com as mãos no volante
O dia em que comecei a ter verdadeiramente prazer em conduzir foi quando o meu instrutor me disse: «hoje tenho de ir aos Olivais comprar uma peça para a minha Harley-Davidson!» Sim, íamos a um sítio específico, com um objectivo concreto. E lá fomos, comigo ao volante.
Lembro-me do prazer que foi esse momento em que ele deixou de lado as instruções esmiuçadas do costume: põe a mudança, faz pisca, olha pelo espelho. Não: disse apenas onde queria ir e eu fui. O básico da condução já eu sabia: agora tinha de começar a ir onde é preciso.
Claro que, na verdade, ainda me faltava aprender imenso. Mas, lá está: aprendemos a escrever melhor quando queremos chegar a algum lado, quando o exercício não é artificial, quando por fim temos o volante na mão para fazer qualquer coisa com a máquina.
E há isto: uma pessoa que conduza bem na estrada, em que é preciso cuidado e condução defensiva, pode não ser um bom corredor de Fórmula 1 — e vice-versa. Na escrita, é a mesma coisa: saber escrever bem um contrato não quer dizer que a pessoa seja um bom escritor de contos. Quem sabe escrever ensaios pode não saber criar bons formulários para uma repartição (é difícil!).
Para escrever bem, temos de aprender o que é preciso para chegar onde queremos. Escrever bem não é algo abstracto, que se aprende de forma teórica: é na prática, é com objectivos concretos na mão, é com o leitor na nossa mente, é com sítio onde queremos chegar nos nossos olhos — é com tudo isto que aprendemos a escrever melhor.
Mas não é conduzir sem destino?
Sim. Às vezes, é bom pegar no carro e partir sem direcção, para descansar a cabeça e encontrar uma praia onde nunca fomos, paisagens que nos surpreendam, novas terras. Já estamos no mundo da literatura — que é um mundo muito bom, mas que tem de ficar para outras mãos mais experientes.
Ah, mas não é só isso, diz-me algum leitor mais céptico. Às vezes começo a escrever com uma intenção, mas acabo a escrever sobre outra coisa.
É verdade: isso acontece muitas vezes. Estou a escrever um texto e começo a vaguear, a sair da estrada e a falar doutra coisa. É mais habitual do que parece.
Na fala, já não podemos fazer nada — e é por isso que as conversas são, às vezes, passeios sem rumo pelas nossas vidas e pelas nossas ideias (e é tão bom!). Mas a escrita, que tem muitas limitações, tem esta vantagem: podemos reescrever. E, por isso, em muitos casos, com mais ou menos digressões, o importante é que o texto pareça estar escrito do princípio ao fim com o objectivo em mente. Na escrita, tirando os casos em que gostamos de mostrar a forma anárquica como todos pensamos, devemos fazer como alguém que pega no carro para ir a uma cidade, acaba por ir para outra e, uma vez lá chegado, pega no mapa e cria um itinerário que faça fingir que sempre quis ir ali parar.
Não sei se me estou a fazer entender: a escrita é um processo de criação de textos — e é o aspecto final do texto que importa. O que fizemos para lá chegar às vezes é uma aventura cheia de hesitações, atalhos e tentativas falhadas. Mas o resultado final deve parecer ter sido feito do princípio ao fim sem hesitações: ou com as exactas hesitações que nos servem para aquilo que queremos fazer com o leitor.
É um artifício? Claro! A escrita é um artifício. O truque está em que tudo pareça natural. Mas sobre isso falaremos nos próximos dias…
Para a frente é que é o caminho!
Bem, deixemos de lado esses atalhos em que nos metemos. Na verdade, para começar a escrever temos mesmo de saber onde queremos ir — mesmo que depois mudemos de ideias. Por isso, sim, devemos começar por pensar naquilo que queremos fazer com a escrita — e usar todos os recursos para isso mesmo. Sem medo.
Escrever uma carta a um filho, escrever uma carta a um jornal, convencer os amigos a participar nas nossas causas, debater com alguém num blogue, fazer uma exposição a um serviço público para que nos resolvam um problema, pedir para que quem nos lê vote numa proposta em particular, reclamar junto duma empresa, participar na vida em sociedade, escrever um e-mail para convencer a pessoa a ler o nosso currículo — a nossa vida depende da escrita.
As falhas na escrita, por vezes, são mais do que aborrecidas: desde o cliente que perdemos porque um e-mail foi mal interpretado, passando pelo amigo que ficou triste pela forma brusca como nos explicámos no Facebook, indo acabar no artigo do blogue da empresa em que trabalhámos muitas horas e ninguém leu. Escrever melhor ajuda-nos a trabalhar melhor.
Tudo isto é importante — tal como também é importante aprender a escrever com prazer: o nosso e o do leitor. Porquê? Porque a escrita faz parte da vida e a boa escrita é uma parte da boa vida. Ora, pois: disse acima que escrever bem nos ajuda a trabalhar bem. E não é que também nos ajuda a viver melhor?
Três conselhos práticos
Para escrever melhor, é bom ter objectivos que nos deixem com vontade de pegar no volante e partir. Quero convencer alguém? Não preciso de ir reler a gramática toda do princípio ao fim: o que devo fazer é ler outros textos para ter ideias, experimentar soluções na prática, rever e reescrever no fim. Trabalhar e não parar até conseguir um texto que faça o que precisamos que ele faça. E, na verdade, tudo isto funciona melhor se acreditarmos mesmo no que estamos a dizer.
- A escrita não se aprende em bloco: alguém que escreve bons contratos pode ser terrível a escrever num blogue. Temos de ter a humildade de estar sempre a aprender, mesmo quando alguém nos diz: «escreves muito bem». Ninguém escreve muito bem em geral. Há quem seja bom na ficção, outros nos artigos científicos. Mas escrever bem em abstracto é coisa que não existe. O importante é tentar, errar, escrever melhor da próxima vez.
- Tal como na condução, não importa apenas chegar vivo ao destino: a escrita também implica chegar ao lugar onde queremos sem grandes abanões e, se possível, passando por sítios bonitos. Ora, já sei, às vezes, é ao contrário: escrevemos para que o leitor passe por um grande abanão e veja os sítios menos bonitos que também há. Tudo isso é verdade e vai dar onde começámos: escrevemos para chegar a algum lado — mas que lugar é esse já não vos posso dizer.
Escrevamos, pois! É importantíssimo para as nossas vidas — e, às vezes, chega a ser um prazer.
Escrever é para mim um prazer. Partir com um destino: por vezes até com mapa e bússola. Mas descobrir nesse percurso novas personagens, novas paisagens, novas cidades: é o máximo. Ou seja: ir lendo o livro à medida que o for escrevendo. Mesmo com a meta definida: ou não!