Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

A internet deu cabo do português?

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Muitos dizem por aí que a língua portuguesa sofre das maiores patifarias por essa internet fora, como se o espaço online fosse especialmente propenso aos erros e à falta de conhecimento da língua.

Depois, muitos desses tais continuam por aí fora, embalados pela retórica catastrofista, e afirmam que «isto está cada vez pior».

Por fim, as ideias misturam-se, o discurso enovela-se e já estamos a afirmar que a culpa é mesmo da internet: fala-se mal, escreve-se cada vez pior, e tudo isto é por causa deste mundo cibernético.

Porquê?

Porque é assim que nos parece a uma primeira vista muito superficial, rapidamente transformada em certeza absoluta e muito lúcida, constantemente alimentada pelo nosso cérebro sempre propenso a reparar mais naquilo que confirma as suas crenças (o famosíssimo «erro da confirmação»).

Agora, recue-se um pouco e olhe-se para tudo com alguma serenidade. Será que a internet dá cabo da língua?

Talvez — digo eu em alternativa — se dê o caso de termos acesso aos escritos de muito mais pessoas, que escrevem de forma despreocupada pelos facebooks deste mundo, e que nem todos têm o mesmo talento ou a mesma experiência de escrita — ou, diga-se, o mesmo interesse por escrever bem. Pergunto ainda: não será que isto, afinal, sempre foi assim — ou talvez tenha sido até muito pior? (Sacrilégio, claro.)

Ora, reparem nas ementas dos restaurantes, nos sinais escritos às portas das mercearias, nos avisos pregados em certos terrenos onde sempre foi proibido «votar lixo». Tudo isto existe há muito tempo — pelo menos desde que grande parte da população aprendia a escrever mal e porcamente* e pouco usava tal saber para lá desses avisos que tantos de nós gostamos de achincalhar, porque sabe bem sentirmo-nos superiores a esses pobres diabos, não é verdade?

Nas últimas décadas, ninguém ou quase ninguém ficou a saber escrever pior; aliás, há cada vez mais gente a escrever muito e, se tivesse de apostar numa hipótese, diria até que se escreve melhor, se olharmos para toda a população e não só para o rarefeito mundo dos cronistas e escrevinhadores de certas ruas de certas cidades. Ora, é assim, mas também há isto: todos contactamos com muito mais textos e provavelmente 90% desses textos não prestam. Daí a ficarmos convencidos que «antigamente é que era bom» vai um pequeno passo, porque do passado lembramo-nos dos 10% muito bons e, no presente, estamos inundados pelos 90% muito maus.

Ora, vai-se a ver e 90% de tudo o que se escreve, escreveu ou escreverá é mau. E, por essa internet fora, haverá sempre os 10% de boa escrita, que é preciso ter alguma paciência para encontrar.

Hei-de voltar a este 90%. Até há uma lei sobre isso e tudo. Uma daquelas leis como a de Murphy (que diz que tudo o que pode correr mal vai mesmo correr mal). Ora, há uma lei que diz que 90% de tudo é porcaria…

Não vos digo já que lei é essa. Fiquem com água na boca, que o texto já vai longo.

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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2 comentários
  • A sanha anti-Manuel Monteiro já estará a ir longe demais, não será? Talvez não faça parte dos circuitos herméticos em que se movem determinadas personalidades e em que outros gostariam de entrar, mas…

  • Não há nenhuma sanha especial, apenas critica acérrima a quem inventa erros de português, acabando por prejudicar todos os falantes e escreventes (como boa intenção, é certo).

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