Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

A irresistível tentação de corrigir o português dos outros

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Há quem se irrite muito com os erros dos outros e passe a vida a corrigi-los. Da minha parte, confesso que me irrito mais com os erros de quem corrige os erros dos outros.

Porquê? Porque os erros de português dos nossos textos prejudicam-nos, acima de tudo, a nós próprios. Já as correcções erradas podem prejudicar quem as recebe sem as ter pedido.

Depois, o que querem?, intriga-me esse prazer que muitos sentem em corrigir os outros, inventando regras e encontrando erros mesmo quando as regras não existem e os erros são falsos — ou, o que será mais comum, a regra existe, mas é mais complicada do que pensa o corrector.

É por isso que acho mais importante ser rigoroso quando corrigimos do que quando escrevemos.

(Ao contrário do que possa pensar quem costuma ler este blogue, estou convencido de que é possível — mas muito difícil — ser um bom crítico do uso alheio da língua portuguesa. Querem um bom exemplo? Olhem para o Linguagista, blogue de Helder Guégués — o autor corrige os outros, mas com humor, rigor e sem cair nos habituais mitos dos guerreiros da língua.)

Vem tudo isto a propósito de uma «correcção» que recebi numa partilha da primeira parte da História Secreta da Língua Portuguesa (que me pus por aí a inventar).

Perante a frase «Já repararam que a grande maioria das pessoas que falaram português ao longo dos tempos não sabia ler nem escrever?», disse-me uma correctora de ocasião:

A grande maioria das pessoas que falou português. A maioria falou e não falaram.

Correcção seca e atrevida, que o meu erro não merecia mais considerações, não é verdade?

Ora, não estou livre de espetar erros neste blogue. Se alguém procurar, deve ser relativamente fácil encontrá-los.

No entanto, não me parece que a frase em questão esteja errada. Reparem: «A grande maioria (…) não sabia ler nem escrever»… O verbo («saber») concorda com o sujeito.

A correctora achou que tínhamos um verbo («falar») e um sujeito («a grande maioria das pessoas»), mas na verdade a frase não tem essa estrutura.

Não me vou pôr para aqui a desenhar árvores armado em linguista de fim-de-semana, mas acho que podemos todos concordar que o verbo «falar» não está ligado à «maioria», mas antes a «pessoas». (Isto das maiorias tem dado muitas dores de cabeça a muita gente, ultimamente.)

Tenho agora uma confissão a fazer. Vi o comentário da senhora logo que acordei. Ainda mal tinha aberto os olhos e já estava a responder. Só que, contra os meus próprios conselhos, fui um pouco agressivo:

“A maioria (…) sabia.” “As pessoas que falaram.” A frase está correcta. Convém ter mais atenção antes de corrigir o português dos outros.

Que falta de chá da minha parte… Peço que tomem em consideração todas as atenuantes antes de passar sentença.

O certo é que pedi desculpa e, num diálogo bem mais civilizado do que fariam supor as primeiras trocas de mimos, a senhora acabou por reconhecer o erro e tudo acabou em bem.


Agora, uma pergunta: por que razão sentiu a comentadora necessidade de corrigir o erro?

Porque — digo eu — sabe que a concordância da palavra «maioria» levanta problemas por aí. Logo, tem uma espécie de alarme mental instalado e, sempre que vê a palavra «maioria», procura o verbo, a ver se está bem conjugado. Quando viu a «maioria» da minha frase, procurou o verbo, viu um plural, e disparou. Mas era falso alarme…

Quem anda, assim, atento a estas armadilhas da língua (tão atento, que às vezes dispara em falso) estará, certamente, convencido que a língua está a precisar de quem a defenda, que o português está pelas horas da morte, que isto anda tudo uma desgraça. Daí a tentação de corrigir, de defender a dama, de atirar ao erro.

Mais vale disparar e perguntar depois, que a língua não está para brincadeiras.

Será isso que está por trás da irresistível tentação de corrigir o português dos outros?

Compreendo, mas alerto para os perigos: andarmos por aí a ler com tanto alarme na cabeça é desconfortável. Mais vale descontrair e ler sem medo. A ler e a escrever defendemos mais a nossa língua do que a disparar sem ver.

Se me permitem, bom mesmo é olhar com mais prazer para a nossa língua, tão sacaninha. Já viram, por exemplo, a maneira curiosíssima como a palavra «lá» se comporta em português? Não é isto bem mais interessante do que andar aos tiros a erros que não existem?

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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7 comentários
  • Agradeço me corrija:

    “A maioria dos leitores não gosta dos meus textos ou

    “A maioria dos leitores não gostam dos meus textos”
    Obrigado

      • Então não seria melhor dizer: 《As pessoas, na maioria, não sabiam escrever?》 Não estou nada convencido na ideia de que não haja necessidade da verificação da concordância. .

        • Claro que há necessidade de verificar a concordância. O que se passa é que, na frase em apreço, o sujeito («a maioria…») concorda com o verbo respectivo («saber»). Ou seja, a frase está correcta. Quanto à opção que apresenta, é outra forma de dizer a mesma coisa, também ela correcta. Resumindo: sim, é preciso verificar a concordância, mas também é preciso compreender a estrutura da frase para avaliar essa mesma concordância.

  • Vai-me desculpar, se escreve sobre a língua, claro que os seus leitores estarão sempre muito atentos para eventuais (putativos, aparentes, etc.) erros. Fácil conjectura, fácil de compreender…
    Mas tem razão: 1) Importante controlar o tom; 2) Muitas vezes, até nem há erro; 3) Outras vezes, a coisa tem que se lhe diga.
    Eu, que por acaso sou um bocado picuinhas na matéria e não me ensaio muito para aqui ou ali assinalar lapsos aos autores (normalmente, chamo-lhes gralhas – e muitas vezes são), peço licença para aqui me justificar sumariamente: não está em causa fazer de sabichão, nem pretender saber mais do que o interlocutor, nem muito menos rebaixar o autor do texto. Apenas, muito simplesmente, atalhar a propagação do erro, da asneira, do lapso, da gralha, tendo em conta o efeito de imitação…
    Nos textos da rede, como dos meios, o erro tende a multiplicar-se ad infinitum, influenciando pela sua repetição permanente mesmo aqueles que o reconhecem como erro, consabidamente.
    Não tenho espaço para exemplos, lembro apenas o caso de ‘despoletar’, que se instalou, designando o contrário do visado pelo falante, por confusão dos falantes dos jornais (‘o que despoletou a discussão’…). Em princípio, seria ‘espoletar’ (armar, pôr a espoleta), o contrário de ‘despoletar’ (desarmar, tirar a espoleta)…

  • Peço desculpa pelo teor da minha anterior intervenção. Na realidade, só agora, após uma nova passagem pelo texto, compreendi a razão que inteiramente lhe assiste. Não que eu tenha mudado a minha forma de pensar sobre a matéria; simplesmente não tinha eu entendido o que estava em causa. Tem toda a razão e a minha intervenção não faz, assim, qualquer sentido.
    Uma vez mais, apresento as minhas desculpas.

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