Tento não falar muitas vezes do acordo ortográfico neste blogue, porque estou em crer que, nisto da língua, há muitos temas interessantes e importantes para lá dessa obsessão de tantos, de um e de outro lado da contenda tribal em que a discussão se transformou.
Hoje, não posso evitar falar do assunto. Esta semana, a excelente coluna sobre questões linguísticas da revista The Economist fala da reacção emocional dos franceses à sua reforma ortográfica caseira («Je suis circonflexe»). Não vou estar a repetir o que podem ler no original (se souberem inglês, é certo), mas, resumindo, o colunista mostra que o problema real é a ligação emocional muito forte dos falantes de cada língua à ortografia que aprenderam na escola. Tudo vai beber às recordações da nossa aprendizagem da língua materna. E com as recordações de infância não se brinca!
O mesmo se passa por cá (com um ou outro laivo de nacionalismo bacoco que tento ignorar). Não é que o acordo ortográfico não tenha problemas em si, que os tem e não são poucos (já muitos os explicaram muito bem explicadinhos). A questão que quero sublinhar é esta: a razão por que tantos o recusam é sentimental — e ainda bem! Reconhecer isto não é dar razão aos defensores do acordo. Antes pelo contrário: sem razões muito fortes, não devemos atacar aquilo que faz parte do património emocional de cada um de nós. E não encontro razões que justifiquem esta mudança imposta de cima…
Agora uma nota incómoda: para além de todos os profissionais que têm de lidar com a nova ortografia, existe também uma geração que aprendeu a escrever com o acordo. A sua ligação emocional é à nova ortografia, não à antiga. Mal ou bem, temos de ter isto em conta. (Para quem está já em pânico, convém lembrar que a língua é a mesma e ninguém deixa de conseguir ler um texto porque está na outra ortografia. Sei que é fraco consolo, mas aqui fica.)
Para terminar, um pormenor em que poucos reparam: a implementação do acordo está a encontrar tantas resistências também porque, pela primeira vez, há uma reforma ortográfica num tempo em que a escrita e a norma-padrão já não são propriedade duma pequena elite. Por todo o país, uma imensa maioria de portugueses lê e escreve, coisa que não acontecia em 1911 ou em 1945.
Ou seja: a reacção ao acordo mostra que a língua-padrão é hoje, muito mais do que no mítico antigamente, propriedade de todos os portugueses. E ainda bem! (Agora, não me venham é dizer que a língua está em decadência…)
O Marco, sempre que fala deste assunto, sente a necessidade de dar umas marteladas aqui, mas também acolá, criticar por um lado, mas defender por outro. Porquê? Assuma uma posição, não irá perder leitores por causa disso. Foi com posições dúbias e titubeantes destas que o acordo, de que diz não gostar, acabou em vigor. Pois. E muito além da questão sentimental, o centro da discussão em torno do AO é científica, e é isso que deve ser tido em conta, se o quisermos discutir seriamente, claro está.
A minha posição é pouco radical, mas parece-me clara.
Não me importava que a discussão em redor do acordo fosse, acima de tudo, científica. Mas pergunto: se fosse cientificamente perfeito, o acordo seria aceite sem mais por todos nós? Não me parece. Mesmo que não concorde comigo, não acha razoável argumentar que a nossa aversão ao mesmo é, em primeiro lugar, sentimental e só depois científica?
Por fim, para lá dos defeitos científicos (que muitos analisaram e bem) e da ligação sentimental à ortografia que aprendemos (de que falo acima), o grande problema do acordo é este: não serviu para nada (e acabou por deixar a ortografia ainda mais estilhaçada).
Cientificamente não há uma ortografia “perfeita”, pelo simples motivo de que o acto da escrita e o acto da leitura têm características neurológicas distintas que levariam a necessidades ortográficas diversas e antagónicas. É algo que é sabido desde os anos 80 do século passado, com as descobertas das ciências neurocognitivas.
Aliás, uma letra – uma “consoante muda” representa “bits” de informação e não, como na boçal visão do séc. XIX, que é a do acordo, “letras a mais”.
O “acordo” – que, diga-se de passagem, não está em vigor – representa, por isso, uma visão simplista e completamente caduca da ortografia.
Talvez ler os trabalhos da Prof. Uta Frith ajude a perceber o tosco do “acordo”.
Ah, a existência de ligações emocionais ou, melhor dizendo, de hábitos de escrita – é uma característica dos países avançados – e são tão mais fortes quanto maior o grau de literacia de um país.
Quem, de certeza absoluta, não tem ligações emocionais ou hábitos de escrita são os analfabetos – no Brasil, por exemplo, a imensa maioria da população.
Já nos países cultos, essa ligação à língua escrita é bastante estreita e as alterações são notadas. Tão notadas que em Inglaterra nunca houve reformas ortográficas – nem ditaduras.
Nota – Para quem venha falar da reforma alemã (a francesa já foi desfeita pela Academie Française) convém lembrar que houve palavras que passaram de duas a três consoantes (Schiffahrt -> Schifffahrt Flußschiffahrt → Flussschifffahrt, Mißstand → Missstand). Muito longe – e em sentido contrário – ao das mutilações tão queridas do acordês.
Muito obrigado pelo comentário! Acho especialmente importante a primeira frase: «Cientificamente não há uma ortografia “perfeita”, pelo simples motivo de que o acto da escrita e o acto da leitura têm características neurológicas distintas que levariam a necessidades ortográficas diversas e antagónicas.»
É uma citação da Prof. Uta Frith.
Os pressuposto do acordismo são do século XVIII e XIX, abandonados há muitos anos. O acordismo é, infelizmente, um sintoma do grande atraso (da verdade vergonhoso) de Portugal e Brasil e as historietas contadas pelo acordismo apenas servem para se perveber o quão à margem estão dos verdadeiros problemas ciêntíficos actuais. As modernas aquisições da imagiologia (“PET scans”- que permitem ver o funcionamento de um órgão, ajudaram a perceber por que a apreensão da palavra se faz globalmente e que, por isso, a “simplificação” da língua é um absurdo, apenas levando a perdas de informação que são necessárias para o acto da leitura.
Para se ter noção da informação contida numa letra: https://www.youtube.com/watch?v=YvABHCJm3aA
Língua e ciência, quando se fala em normas, não calham bem. A língua é essencialmente política.
Bem, eu nunca li a coluna do The Economist antes, mas esta não me transmitiu uma ideia de “excelente.” Resumir o ânimo exaltado a um apego desmesurado a memórias infantis é menoscabar razões mais sérias para se opor à reforma, a começar pelo facto de que uns quantos peritos em linguística não terem a menor autoridade para mexer na língua; podem estudá-la e descrever mudanças, e mais nada. É um abuso de poder, legitimado pelo papel do governo, o que não o torna mais legítimo, como tantos horores provocados com o benoplácito de governos democraticamente eleitos o prova.
Esta coluna é apenas uma opinião, e pelos vistos feita à distância, superficial, sem querer compreender melhor os opositores. Não tem mais valor do que qualquer outra opinião. A ironia é que este menosprezo pela refroma está a ser praticado pelo falante de uma língua que a) nunca teve uma Academia manipulando a língua inglesa e b) nunca teve uma reforma oficial. Se algum dia acontecer com a língua dele – espero que o inglês seja poupado a tamanha ignomínia – talvez não ache o caso tão jocoso.
Caro Luiz, obrigado pelo comentário. Não me pareceu que o autor da coluna tenha menosprezado os opositores da reforma. A ligação emocional à ortografia é bem importante e não deve ser desprezada. Por outro lado, é bem verdade o que diz o Luiz: o inglês nunca teve uma academia nem uma reforma imposta de cima (e não deixa de ter uma ortografia estável). Ainda bem.
Seria interessante falar-se do apego emocional dos acordistas à mutilação da língua.
Marco:
Em primeiro lugar quero dar-te os parabéns por este blogue e pelos artigos interessantes, com ideias e opiniões inteligentes, e sempre bem escritos e bem pensados. Falar de temas complexos ou controversos (como o AO) de forma simples e bem estruturada não é tarefa fácil, mas acho que os teus textos conseguem fazê-lo de forma perspicaz e cativante! Parabéns!
Quanto a este texto, também não li o artigo do The Economist, mas, não tenho dúvidas que todos temos uma ligação emocional à nossa língua, ortografia e tudo o resto incluído. Sim, porque a língua transporta vivências culturais e invoca experiências pessoais únicas.
Isto, claro está, do ponto de vista de alguém como eu, a viver nos EUA, numa zona pouco comum como destino de emigração portuguesa. Nunca oiço música no autocarro porque tenho esperança de “apanhar” alguém a falar português. Às vezes, lá acontece, normalmente português do Brasil, e eu fico de coração cheio! Acontece-me mais ou menos o mesmo quando alguém me consegue dizer uma frase inteira em português e eu até consigo entender (fico emocionada ao ponto de quase chorar). O pior é mesmo quando um cantor português vem fazer um espetáculo por estas bandas. O último concerto de um cantor português a que decidi ir foi o do António Zambujo. E não é que eu seja grande fã mas chorei quase do princípio ao fim do concerto, simplesmente porque, neste caso, a música me fez pensar em muitas coisas que me fazem falta e uma delas, talvez das mais importantes, é poder expressar-me na minha língua, cá à minha maneira, sem ter de pensar sempre no que faz mais sentido em inglês.
Tudo isto para dizer, que concordo contigo, a nossa ligação emocional à língua e à ortografia é indiscutível. O que é necessário é compreender que a língua precisa de evoluir independentemente dessa ligação. Se já não escrevemos pharmacia, para quê escrever óptimo?
Mais uma vez, parabéns, continua e muitas felicidades!
Rita
Muito obrigado, Rita! Fico muito contente com o teu comentário e com o testemunho dessa ligação emocional à língua (que vai, claro está, muito além da ortografia). Muitas felicidades para a tua vida nos EUA!
Xi… Uma opinião (seja ela qual for) sobre o AO? É pá… o comentarista/bloguista está a picar um vespeiro com um pau…. 🙂
Uma das noções que melhor se aplica ao AO, é:
Aquando da ‘introdução’ dos automóveis, houve muita gente que referiu que numca iriam deixar de usar os cavalos por troca com aquelas coisas barulhentas e malcheirosas!
E realmente nunca trocaram!
E depois morreram!
Sem dúvida, é assunto para duelos ao amanhecer. 🙂
É! Até já ninguém escreve em inglês. Parece que vão começar a escrever em brasileiro…
A “evolução de uma língua” quanto à ortografia consiste na sua…. estabilização. Por isso, o inglês, onde não há analfabetos há mais de um século, não “evolui” e é igualinho ao que era há 150 anos.
Essa estabilização, exige a ausência de erros e a ausência de erros apenas é possível quanto o acesso à norma é sólido e fácil – o que que dizer, quando houve uma uma completa e eficaz escolarização.
Ora, em Portugal estamos longe disso, apesar da propaganda: ainda há dias o ministro do ensino superior deu pontapés na gramática na Assembleia da República – algo impossível de acontecer num país avançado.